O seu novo filme, Sombra, conta a história de Isabel em busca do filho desaparecido. Porquê escolher este tema e esta história real?.Confesso que era um tema que já tinha vontade de abordar há alguns anos, especialmente devido à investigação que fiz para o meu primeiro filme Carga. Gosto de trazer para a luz assuntos que por norma estão, lá está, nas sombras. Este tema necessita ser debatido. É assustador pensarmos que em 2020, em plena pandemia, desapareceram 1100 crianças em Portugal, se pensarmos no resto do mundo estes números ainda são maiores. As histórias que inspiram este filme são várias porque falei com diversas famílias e mães através do contacto estabelecido com a parceria da Associação Portuguesa de Crianças Desaparecidas com um objectivo muito concreto: retratá-las com justiça..Rui Pedro desapareceu em 1998. Fazer este filme não corre o risco de reabrir feridas nesta e outras famílias?.Todo o projecto foi desenhado em conjunto com elas. Foram os primeiros a ler o guião mal ficou finalizado. Foram também os primeiros a ver o filme logo que ficou pronto. Se em algum momento entendesse que seria algo que lhes faria mal jamais teria avançado. É um tema demasiado delicado para ser abordado de ânimo leve. As reacções foram sempre de grande abertura, tanto da Filomena Teixeira que acaba por ser a inspiração maior para este filme, como das restantes famílias. Estive com eles várias vezes, com alguns ainda estou regularmente ou mantemos o contacto. É impossível estar com estas pessoas e não sentir empatia ou criar laços de amizade. No fundo o que todos desejam é que o filme seja visto, que a mensagem passe e que as pessoas não se esqueçam dos seus filhos. Porque eles não se esquecem..Acredita que, pelo contrário, o filme pode ajudar/alertar de algum modo?.Tenho a certeza disso. E temos exemplos disso: na antestreia tivemos várias pessoas presentes no cinema São Jorge e depois disso a própria associação já nos disse que na semana que se seguiu à antestreia os pedidos de ajuda de famílias com crianças desaparecidas, mais do que duplicaram. A polícia ficou também mais sensibilizada para a urgência na localização dos menores. Acreditamos que quanto mais o filme for visto mais pessoas vão ficar sensibilizadas para a realidade que vivem as famílias das crianças desaparecidas quando as câmaras se desligam e elas ficam sós..Considera que pior do que gerir e filmar a morte, é gerir e filmar a incerteza?.Sem dúvida. Pior ainda do que filmar a incerteza é sem dúvida viver a incerteza. Já o disse várias vezes, mas este filme mudou para sempre a minha forma de encarar o mundo e a vida. No meio do sofrimento e da angústia que todas estas famílias vivem existem dois sentimentos dominantes: amor e esperança. Para mim é muito grafiticante enquanto realizador saber que as pessoas que retratei se sentiram representadas com justiça e com verdade. Sei que isso nunca poderá preencher o vazio em que muitas delas vivem, mas pelo menos sei que a existência deste filme lhes dá uma esperança: a de que as pessoas vão entender um pouco aquilo que elas vivem. É muito importante percebermos a força e a coragem que estas pessoas têm. É justo que isso lhes seja reconhecido..Antes de ser exibido em Portugal foi passou no Shangai International Film Festival. Que reacções recolheu nesse evento?.Começámos por estrear no Barcelona Sant Jordi Filme Festival onde ganhámos dois prémios, um deles o da crítica, desde então já passámos pelo Shanghai Internacional Film Festival, Mastercard Off Camera na Polónia, Ischia Film Festival na Itália, no festival de cinema francês Les Reflets du Cinéma Ibérique et Latino-Américain e agora a 30 de Outubro seremos apresentados no Raindance Film Festival no Reino Unido onde estamos nomeados para dois prémios: o de melhor realizador e o de melhor performance para a Ana Moreira. Os festivais e a internacionalização são sempre uma coisa boa. É onde conseguimos sentir em primeira mão a reacção das pessoas ao filme e também da crítica que lá foi sempre muito positiva. Existe ainda a vantagem do filme ficar bem posicionado do ponto de vista da distribuição internacional. Neste momento já fomos vendidos para vários territórios: EUA, América Latina, China, Índia, Coreia do Sul e estamos a negociar outros territórios. É algo que me deixa muito feliz porque efectivamente é bom que o cinema português possa ser reconhecido internacionalmente e neste caso em particular fico ainda mais feliz por esta história poder ser vista em vários países tendo o tema que tem e o facto deste ser um drama global. Neste momento estamos pré-seleccionados para sermos o candidato de Portugal aos óscares 2022 lado a lado com outros filmes portugueses. Sermos o filme escolhido seria algo que nos deixaria a todos muito felizes, pelo filme e pela causa..Qual será o seu próximo tema/assunto escolhido para um novo filme seu? As transformações provocadas pela pandemia pode ser uma inspiração para um novo filme?.Na verdade o meu próximo projecto já está filmado. Rodámos em plena pandemia no início deste ano em Barcelos. É um filme um pouco diferente do que fiz até agora, mas sempre com uma base de realidade apesar de se tratar de um filme distópico sobre direitos humanos, liberdade de expressão e como seria se todos vivêssemos num mundo oprimido por uma ditadura. Esperamos estreá-lo em 2022 dado que neste momento estamos a pós-produzi-lo. A pandemia acabou por ser não uma inspiração, mas o motivo pelo qual fiz algumas alterações ao guião dado que os fenómenos sociais a que assistimos nesse período foram bastante fortes e acabaram por me impactar e influenciar de alguma forma..Terá sido dos papéis mais duros e difíceis que fez até hoje?.Foi talvez um dos mais difíceis. No entanto as personagens mais distantes e complexas são as que me dão mais prazer fazer e todas as dificuldades são ultrapassadas quando tens diante de ti um projecto em que acreditas, um realizador com quem sentes empatia e apoio bem como uma equipa e um elenco talentoso e generoso. Acho que também é importante desmistificar a ideia que o ator sofre ou tem de maneira igual às personagens que interpreta. A nossa prática artística profissional é interpretar histórias e personagens e é claro que queremos imprimir verdade e emoção naquilo que fazemos e neste filme em particular procurei representar esta personagem de forma justa e digna afastando-a da ideia de vítima mas antes uma mulher com agenda própria, que é ativa e não desiste de procurar o seu filho.Passou muitas horas com a verdadeira mãe, Filomena Teixeira, para conseguir interpretar com tamanho realismo?.O realizador Bruno Gascon, assim como a produtora Joana Domingues, tiveram a sensibilidade e a inteligência de conversar com várias mães e famílias de crianças desaparecidas para a construção do argumento e para a realização do filme. Tive a oportunidade também de me reunir com algumas destas mães para conversar e descobrir um pouco as suas histórias de forma mais pessoal e íntima. Esses encontros foram muito importantes para mim para a construção da minha personagem. Em relação à Filomena Teixeira, o Bruno e a Joana já tinham falado e estado com ela muitas vezes antes de mim e ainda antes de avançar para os ensaios com o resto do elenco passamos juntos uma tarde com ela. Foi um momento muito especial em que a Filomena teve a amabilidade de nos contar mais uma vez toda a sua história que é tão difícil e tão brutal. Esse encontro foi decisivo para encontrar a personagem principal deste filme, a Isabel..Sentiu na "pele" como é ser uma mãe desesperada que não sabe do filho. Este papel tirou-lhe o sono? Passou a ser mais "controladora" dos seus?.Como já referi, creio que um ator não se deve deixar levar pela complexidade ou pelo sofrimento das suas personagens. No entanto é impossível não te deixares emocionar mais num momento em que descobres realidades tão difíceis que de outra maneira, se não fosse através deste filme, talvez nunca viria a descobrir e ter uma melhor percepção e consciência sobre elas..Que mensagem gostaria de deixar a todas as mães que perderam os seus filhos?.Às mães e famílias que perderam os seus filhos, apenas posso expressar a minha grande admiração pela sua luta constante contra o esquecimento dos seus filhos e pela maneira corajosa como todos os dias sobrevivem na ausência deles..Disse que espera "que esta seja uma oportunidade para que estas crianças não sejam esquecidas". Como o filme pode ajudar as famílias que perderam os seus filhos?.O cinema também pode ter esta função, de nos dar a conhecer aspectos da nossa sociedade menos agradáveis mas que precisam de ser visíveis e debatidos. No caso destas famílias toda e qualquer oportunidade de se falar dos seus casos é uma maneira de combater esse esquecimento e manter viva a memória, bem como uma forma de sensibilizar a nossa sociedade e autoridades a fazerem mais e melhor por estas mães..Para si, enquanto cidadã, que lições da pandemia guarda para si? E como as usará no seu futuro? Mudará alguma das suas condutas, em particular?.A pandemia foi um evento transformador que assolou o mundo inteiro e produziu efeitos em todos nós. Cada um sente a pandemia e a crise económica que lhe segue de maneiras diferentes, e no meu caso, pertencendo ao sector artístico e profissional senti que fiquei, assim como muitos colegas, num lugar de grande fragilidade e desproteção política e social.