Só um quarto dos países europeus dizem que sexo não consentido é violação

Portugal está entre os países europeus a quem a AMI acusa, no relatório hoje divulgado, de falhar às mulheres devido a legislação ultrapassada. Acórdão da relação do Porto é dado como... mau exemplo
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Entre 31 países europeus cuja legislação foi analisada pela Amnistia Internacional (AI), apenas oito - Irlanda, Reino Unido, Bélgica, Chipre, Alemanha, Islândia, Luxemburgo e Suécia - têm definições de violação baseadas na ausência de consentimento. Ou seja: consideram que este crime é cometido sempre que o ato sexual não é autorizado pela vítima. A "vasta maioria", na qual Portugal se inclui, "apenas reconhece a violação quando a violência física, ameaça ou coação estão envolvidas".

As conclusões constam do relatório: "Direito a Estar Livre da Violação: Um Olhar sobre a Legislação e a Situação Atual na Europa e os Padrões Internacionais de Direitos Humanos", que é divulgado este sábado, véspera do Dia Internacional para a Eliminação da Violência Contra as Mulheres. Para a AI, estas "legislações com falhas, a par de uma perigosa cultura de culpabilização da vítima de violação, estão a perpetuar a impunidade por todo o continente".

"Apesar de movimentos como o #MeToo terem inspirado muitas mulheres a relatarem as suas experiências, o triste facto é que continua a existir uma enorme quantidade de casos de violação não denunciados na Europa", lamenta Anna Blus, investigadora da AI na área dos direitos humanos das mulheres da Europa Ocidental. "O receio das mulheres de que não acreditem nelas é confirmado, sucessivamente, quando vemos corajosas sobreviventes às quais falha uma lei datada e com definições de violação que as penalizam, sendo ainda tratadas de forma chocante por oficiais de justiça".

O relatório cita o último inquérito da Agência Europeia para os Direitos Fundamentais (FRA), segundo o qual uma em cada 20 mulheres europeias com mais de quinze anos já foi violada. Ou seja: mais de nove milhões. "Apesar destas estatísticas chocantes, poucos países europeus tratam este crime na lei com a seriedade exigível", critica a AI.

Portugal envolvido na "onda de mudança"

Portugal é um dos países alvo de referência especial no relatório, devido a um episódio tristemente célebre: o acórdão de junho do Tribunal da Relação do Porto, assinado pelos juízes Maria Dolores da Silva e Sousa e Manuel Soares, sobre o caso de uma mulher de 26 anos, violada por dois homens numa discoteca da Maia, quando estava inconsciente. O tribunal, recorde-se, manteve a pena suspensa aplicada aos acusados em primeira instância, considerando que o grau de culpa destes se encontrava "na mediania", e que a ilicitude dos seus atos não era "elevada", até porque, consideraram os magistrados, tinha existido um "ambiente de sedução mútua" por a mulher ter dançado na pista da discoteca.

Em Setembro, quando este caso se tornou público, o Conselho Superior da Magistratura anunciou que não iria atuar por não encontrar "erros grosseiros" ou "linguagem manifestamente inadequada" no referido acórdão. E o vice-presidente deste órgão, Mário Belo, citou precisamente a legislação portuguesa para sustentar a alegada correção da sentença: "Para além das decisões dos tribunais é altura de se começar a olhar também para os parâmetros penais definidos pelo legislador e para o regime de recursos que temos, que não permite que certos casos cheguem ao Supremo Tribunal de Justiça", disse.

Também a Associação Sindical dos Juízes Portugueses (ASJP) - liderada por Manuel Soares, um dos autores do referido acórdão da Relação do Porto -, socorreu-se da lei para defender a sentença, afirmando, em relação ao referido caso, que "não é verdade que tivesse havido violação, que no sentido técnico-jurídico constitui um tipo de crime diferente, punível com pena mais grave".

Outro caso referido pela Amnistia Internacional, que aconteceu em Espanha e ficou conhecido por "a manada", é o da violação em grupo de uma mulher por cinco homens, que foram condenados por abuso e não por agressão sexual, tendo um juíz chegado a defender a absolvição porque nos vídeos feitos por estes com os telemóveis a vítima parecia estar "relaxada".

Apesar das referências negativas, o relatório da Amnistia dá também conta da onda de indignação que estas sentenças geraram nos dois países, apontando-os - a par da Dinamarca, onde estão agendados vários protestos neste domingo exigindo mudanças na lei - como exemplos de uma "onda de mudança" que se estará a formar no continente.

"Espanha, Portugal e a Dinamarca poderão ser os próximos países a mudar a sua legislação, com responsáveis governamentais a assumirem publicamente que estão dispostos a discutir emendas à definição legal de violação".

De acordo com a Pordata, em 2016 - último ano com registos definitivos - foram contabilizados 181 casos de violação em Portugal, 90% dos quais tendo por vítimas as mulheres.

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