Foi em 1886 que o bisavô dos atuais proprietários fundou a Barbearia Campos, situada em pleno Largo do Chiado, então chamado Largo do Loreto. De então para cá, a casa criada por José Augusto de Campos permaneceu na família, apesar de esta ter deixado de ter barbeiros à segunda geração do negócio. José Lopes lê o jornal, de pé, à porta do estabelecimento, fazendo orelhas moucas ao barulho da obra do prédio ao lado. "Não sou barbeiro e não sou dono disto. Sou zelador do espaço no interesse da família", apresenta-se. Na verdade, até tem curso de barbeiro, feito em 2014, para, além do negócio, saber da arte; e até é sócio por herança, após a morte da mulher, bisneta do fundador. Conhece os cantos à casa, domina a sua história e conhece cada um dos utensílios ali expostos como se os tivesse usado numa vida passada.."Esta casa já passou pelas crises económicas do fim da monarquia, pela implantação da república, pelas revoluções quase ideárias da I República, pela gripe espanhola, enfim... pela segunda guerra, pelo 25 de Abril, o incêndio do Chiado... Fomos testemunhas em primeira mão de uma quantidade enorme de acontecimentos, nem sempre favoráveis ao comércio e à atividade", orgulha-se. "Temos sempre resistido, coisa que é capaz de não acontecer com esta nova situação", acrescenta. Engenheiro mecânico de formação, antigo comerciante de ourivesaria na Baixa e no Chiado, não se deixa levar pelo sentimento e pela história quando antecipa o futuro da Barbearia Campos. "Provavelmente", no fim do ano, a casa encerra definitivamente. Depende de quê? "Não depende de grande coisa... De um milagre", responde..O último ano e meio, com a pandemia, foi mau para um negócio que dependia em 60% dos turistas que ali passavam e faziam questão de dar um jeito ao cabelo ou à barba ou a ambos. No ano passado a faturação caiu cerca de 60% em relação a 2019 e este ano a quebra deverá ser de 70% face ao mesmo ano. "Uma coisa é termos sócios que não retiram daqui nenhum proveito e outra coisa é pedir aos sócios que, além de não tirarem nenhum proveito, ainda tenham que colocar mensalmente uma quantia que é significativa", diz José Lopes, para quem estes dois anos "são para lembrar". "Se tivesse imaginado em março de 2020 que ia ser assim já não tinha reaberto", garante. "O custo que tive nestes 17 meses foi muito maior do que ter fechado nessa altura"..Marcas de outros tempos.Lá dentro, os dois funcionários não têm tido mãos a medir com a clientela que chega. É segunda-feira, um dia forte, de manhã. Uns, percebe-se pelos cumprimentos e diálogos, são assíduos. Como foram alguns dos ilustres que têm fotografia colocada num painel na parede: Aquilino Ribeiro, Ramalho Ortigão, Almada Negreiros, Vitorino Nemésio, Eça de Queiroz, Vasco Santana... É nesse painel que está uma apólice de seguros do ano da fundação, que mostra que o valor seguro total era de dois milhões e quinhentos mil réis, "um valor razoavelmente elevado para a época"..Este é o documento mais antigo que resta, mas todo o mobiliário que se encontra na barbearia vem da fundação. E as cadeiras são de 1926, exceto uma, mais moderna, porque naquele tempo lavava-se o cabelo em pé, debruçado sobre as bacias da banca de um mármore manchado pela quantidade de cigarros e cotovelos que ali pousaram, com um chuveiro de água aquecida num samovar..Desta época em que "uma navalha durava a vida toda e mais seis meses", e em que cortar barba e cabelo custava 20 escudos, mostram-se ali, nas vitrinas dos móveis originais, vários apetrechos de barbearia entretanto caídos em desuso, como a caixa com pente, tesoura, lâminas, sabão e outros acessórios que o barbeiro levava a casa dos clientes para um atendimento mais personalizado. Ou os ferros de esticar e enrolar o cabelo, os pulverizadores, os assentadores de navalhas, os bombonieres ou os rolos de papel onde se limpava a lâmina. Na parte de trás, num armário onde antigamente existia um gabinete para cortar o cabelo das senhoras "a la garçonne", como Beatriz Costa usava, há ainda algumas caixas que preservam os utensílios individuais de clientes "mais habituais e de maior qualidade"..Quem ali vai espera isso, garante José Lopes. Um atendimento e um ambiente diferentes daqueles que se encontram noutras barbearias. "Há colegas nossos que fizeram um pastiche da barbearia clássica. Há muitas barbearias supostamente à antiga. Mas barbearias antigas restam muito poucas na cidade e no país", realça José Lopes. Se não acontecer o tal milagre, em breve, poderá haver menos uma.