'Skinheads', insultos e polícia de choque na praça da mágoa

Não houve marcha contra o medo, mas houve marcha de hooligans. Com braços estendidos, petardos, carga de polícia e canhões de água
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Apesar do sol a contrariar as previsões de chuva do Domingo de Páscoa, às duas da tarde, quando era suposto começar a manif "contra o medo", cancelada no sábado "por motivos de segurança", a Praça da Bolsa está a meio gás; nem mil pessoas aqui, contando com as centenas de jornalistas. Com camionetas da tropa e carrinhas de polícia atravessadas em todas as ruas, qualquer tentativa de manifestação parece fadada ao insucesso. Os presentes, entre os quais, como durante toda a semana, se veem bastantes mulheres exibindo na cabeça coberta a religião muçulmana, fazem o que têm feito normalmente: discursar e cantar, ocupar, como num palco, as escadas da Bolsa, erguer bandeiras e cartazes, rezar, deixar flores e velas, dar entrevistas.

Está-se neste anticlímax quando, serão umas 14.45, se ouvem fortes gritos do lado norte, onde fica a gare do mesmo nome. Um grupo de pelo menos cem homens, a maioria em negro total, muitos com cara tapada, comandado por um cabeça rapada empunhando uma tocha, entra na praça em formação cerrada, entoando slogans em flamengo. Agrupam-se no centro, e continuam a gritar, erguendo os braços - alguns naquilo que parece a saudação nazi. Que dizem? "São hooligans do futebol, skinheads", responde um belga. "Extrema-direita."

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"Não somos extrema-direita"

Das escadas da Bolsa ergue-se um assobio, gritos de "racistas" e "fascistas". Um dos do grupo grita: "Não somos racistas. Estamos aqui para lutar contra o terrorismo. E se nós que nos odiamos [abraça um homem ao seu lado, que será de um clube rival] podemos estar aqui hoje lado a lado contra isto, toda a gente pode." Ao seu lado, surge um jovem de aspeto árabe, que grita: "Qual racismo. Estou aqui com eles." O que falara antes beija-o na testa, ri-se. Gritam: "Hey Hey Tous ensemble Tous ensemble [todos juntos]." Mas a praça não está convencida, e menos ainda quando os de negro começam a gritar "On est chez nous [Estamos na nossa terra]."

Um deles é Sven, 44 anos, de Antuérpia, que está com o filho Steve, de 13, os dois de negro da cabeça aos pés. O pai tem a cara semidestapada, mas Steve traz um passa-montanhas de assaltante, com buracos nos olhos, nariz e boca. "Somos hooligans", diz Sven, em inglês (não fala francês). "Estamos aqui contra o ISIS [Daesh]. Mas não nos querem aqui, não sei porquê. Não somos extrema-direita." E a cara tapada é porquê? "Temos uma história, nós. De luta contra a polícia."

O homem que gritara antes e parece um dos líderes está agora a conversar com Nassi, uma belga de origem argelina. Parecem discutir, mas estão afinal de acordo: "Ele disse uma coisa que me sensibilizou: que não está contra os muçulmanos, mas contra os extremistas. Que veio aqui contra o Daesh." Nassi, 40 anos, que trouxe com ela a filha de 13, sossegou: "Quando eles chegaram, pensei que era a extrema-direita. Que eram inimigos. Mas fui falar com ele." É possível, porém, que mesmo que o homem fosse extrema-direita, ele e Nassi concordassem em várias coisas. Por exemplo nesta: "É preciso endurecer as penas. Não temos pena de morte, mas para mim, francamente, um terrorista que matou, e está provado que matou, não devia ter direito a advogado." Ou nisto: "Está bem acolher os refugiados, mas deixaram entrar toda a gente sem controlo. Não pode ser. Também sou estrangeira, mas não pode entrar tudo. Há uma falha na política."

"Não podíamos marchar e eles podem?"

Enquanto Nassi fala, a multidão de negro, que o chefe da polícia da cidade mais tarde contabilizará em 340 [as TV falam de 200, de 500 - ninguém parece concordar num número], ocupa de súbito as escadas da Bolsa. O movimento é tão rápido que parece instantâneo e aparentemente não violento, mas certo é que quem lá estava saiu, e são agora os hooligans que enfrentam as câmaras, que desfraldam os seus pendões. Começam a aparecer dezenas de polícias. Primeiro os de farda azul, seguidos dos de choque. Muita, muita polícia de choque, materializando-se subitamente na praça, assim como dois enormes camiões (canhões de água), que não estavam ali antes. De repente, toda a praça está rodeada de escudos e capacetes, que ocupam também a escadaria. Cá em baixo, um homem grita aos jornalistas: "Viemos protestar contra o terrorismo e contra os muçulmanos." Um outro, que gritava de braço estendido, recusa falar com o DN. A tensão aumenta.

"Não podemos admitir que os neonazis venham ocupar esta manifestação pacífica. É escandaloso que a polícia lhes tenha permitido vir aqui desta forma, claramente contra o espírito desta iniciativa. Fui falar com o oficial responsável e ele disse que o burgomestre [presidente da câmara, não sendo claro se será o de Bruxelas ou o da cidade flamenga de Vilvoorde, de onde vieram os hooligans, que terá permitido a sua partida, sabendo ao que iam] autorizou. Como, autorizou? Nós não podíamos marchar e eles podem?" Eric Demeesier, 53 anos, está furioso. "Não, não deviam ter cancelado a nossa marcha. E em vez disso tivemos a marcha dos neonazis. O burgomestre devia demitir-se."

"É difícil revistá-los"

Um agente mais idoso que está a dar ordens à polícia de choque encolhe os ombros à pergunta sobre como foi possível deixar um grupo trazer tochas e sabe-se lá mais o quê para aqui. Não os revistaram? "Há muita gente que tem estas coisas na Bélgica", responde. "É difícil." Alerta nível 3, revistas em tudo o que é sítio, tiros na rua, sacos revirados à entrada de lojas, marcha pacífica cancelada "por motivos de segurança" e "é difícil" revistar um grupo de hooligans? Está boa. Aliás, poucos minutos após a conversa com o responsável policial, ouve--se um estampido, depois outro. Parecem petardos (a polícia admitirá que foram lançados "projéteis incendiários"). A polícia de choque avança. Jornalistas apanhados no percurso são empurrados, toda a gente começa a fugir - é a total confusão. Já no Boulevard Anspach, são colocadas barreiras para que os que não fazem parte do grupo de desordeiros sejam mantidos à margem da carga. Atrás da fileira de agentes de escudo, capacete e bastão vão os canhões de água, que entram em ação a uns duzentos metros da praça.

"É uma vergonha para o país"

"Estou escandalizado por constatar que tais crápulas com aspeto de nazis vieram provocar os cidadãos no lugar onde estavam a prestar homenagem. É uma vergonha para o país. Tínhamos sido prevenidos ontem pelos serviços de segurança de que eles podiam vir à Praça da Bolsa e vejo que nada foi feito para os impedir." À reação furiosa de Yvan Mayeur, presidente da Câmara de Bruxelas, que exige responsabilidades ao governo, o PM belga responde com "foi feito o necessário para que os manifestantes voltassem para casa".

Em comunicado comum, os principais partidos flamengos demarcam-se, "nos termos o mais claros possível, da pequena minoria que pelo ódio tenta minar a solidariedade e a serenidade. Quem semeia a divisão e prega o ódio faz o jogo dos inimigos da democracia." Exceção à Nova Aliança Flamenga de Bart de Wever, presidente da Câmara de Antuérpia e conotado com a extrema-direita. "Quanto mais se dá atenção aos hooligans mais eles se acham os maiores", disse um porta-voz de De Wever, explicando também a recusa de aquele se juntar ao comunicado pela "inexistência de uma reação comum dos partidos aos atentados".

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