Síria: O ano sexto da guerra do "todos contra todos"

Jihadistas são para eliminar, concordam as potências, Assad fica para já. ONU vê dia 1 como o início da pacificação síria e quer eleições em 2017. Otimismo a mais
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Sempre que ler sobre a Síria de hoje, recorde-se da cena da assembleia de Damasco em Lawrence da Arábia, o filme com Peter O"Toole no papel do oficial britânico que instigou a revolta contra os turcos. O"Toole, de trajes beduínos, tem de bater com a coronha da pistola na mesa para acalmar as tribos. Anthony Quinn, que encarna Auda Abu Tayi, ameaça Omar Sharif, que interpreta Sharif Ali, e este é aconselhado a não responder para evitar "um banho de sangue". À volta, a multidão exulta. Há gente vestida à ocidental, outros de fez, muitos com as vestes árabes. E qual o tema do confronto, numa Síria que em 1918 se preparava para ter como rei Faisal (Alec Guinness)? As falhas nos telefones! "E quem é que precisa de telefone?", grita alguém, acentuando o tom caótico da reunião, destinada a gerir um país recém-libertado de séculos de controlo pelo Império Otomano.

Faisal (ausente da tal reunião) só será ali rei uns meses. Será mais tarde feito monarca do Iraque, compensação dos britânicos ao aliado traído. E os franceses é que ficarão senhores da Síria, da qual destacarão o Líbano. Mas o "todos contra todos" da reunião no filme continua, passado um século do acordo Sykes-Picot com que britânicos e franceses redesenharam o Médio Oriente .

Ao fim de cinco anos de revolta contra o regime de Al-Assad, o conflito nada tem que ver com a Primavera Árabe e é cada vez mais uma guerra de sunitas contra xiitas, árabes contra curdos, muçulmanos contra cristãos. E também cada vez mais as potências mostram como, tal qual no início do séc. XX, os interesses são prioritários mesmo que seja urgente travar uma guerra que fez 250 mil mortos e quatro milhões de refugiados.

Está marcada para dia 1 uma nova fase, depois de o Conselho de Segurança ter conseguido consenso para promover um projeto de paz para a Síria. Ponto base: o futuro de Assad fica por definir, o que desagrada aos turcos e às monarquias do Golfo, é tolerado por Estados Unidos, mas convém à Rússia e ao Irão. Estado Islâmico e Al-Nusra (ligada à Al-Qaeda) são catalogados de terroristas, garante também o acordo, que prevê eleições vigiadas pela ONU em 18 meses.

Confortado pelos avanços das suas tropas desde que os russos começaram em setembro a bombardear os rebeldes, Assad até tem uma viagem nos próximos dias ao Irão. Noticiada pela Al-Jazeera, a visita ocorrerá três meses após a ida a Moscovo, tida como a primeira ao estrangeiro desde 2011.

[citacao: Assad contra rebeldes ou minorias contra sunitas? Potências contra jihadistas ou cada um a defender interesse próprio?]

O Irão tem sido vital para o regime, fornecendo combatentes, como também têm feito o Iraque e o Hezbollah, em nome da solidariedade xiita com Assad, um alauita, seita que muitos muçulmanos negam pertencer ao islão. E este eixo xiita, coordenado com a Rússia, é um ator incontornável.

Outro grupo de países decisivo é o liderado pela Arábia Saudita, que formalizou agora uma aliança islâmica contra o terrorismo, onde sobressai que todos os membros são sunitas. Desde o início, os sauditas apoiaram a rebelião, armando tudo e todos até perceberem que o Estado Islâmico não quer a sua guerra santa confinada à Síria.

A terceira coligação envolvida no conflito sírio é a liderada pelos Estados Unidos. De início hesitante em atacar as bases jihadistas na Síria e limitando-se ao Iraque, abandonou essa estratégia e hoje tanto americanos como britânicos e franceses enviam os aviões contra o Estado Islâmico em Raqqa.

Evitar que estas três alianças choquem (na diplomacia e no terreno) é um dos desafios, em especial depois de aviões turcos terem derrubado um caça russo. Não deixa, aliás, de ser revelador que a viagem de Assad a Teerão, sobrevoando o Iraque, vá ser protegida por aviões russos e tenha sido já deixada a advertência a todos os envolvidos para que "nem sequer se aproximem".

Na resolução da ONU ficou expressa a integridade da Síria e a proteção das minorias. Apesar dos árabes sunitas serem 60%, há comunidades alauitas, curdas, cristãs e drusas e cada uma pegou em armas, ora ao lado do regime, caso dos alauitas e dos cristãos que veem no ditador laico o protetor, ora de forma dúbia, combatendo os jihadistas mas não confiando em Assad, caso dos curdos. E até do lado dos sunitas, a que pertence a senhora Assad, há divisões entre os que toleram o regime e os (a maior parte?) que o querem derrubar, existindo mesmo entre os rebeldes combates entre moderados, salafitas, al-qaedistas e Estado Islâmico. Pacificar esta gente exige um esforço que não é realizável apenas com palavras bonitas dos políticos. Na verdade, não é só a Síria em causa e sim todo o Médio Oriente.

"Virá um momento na história em que árabes, iranianos, turcos, israelitas, curdos e outros, sunitas e xiitas, cristãos e judeus e ateus estarão de tal forma exaustos que compreenderão que nesta guerra de todos contra todos são perdedores todos", alertou Hisham Melhem, que chefia a delegação da Al Arabiya em Washington. Talvez se revissem Lawrence da Arábia os governantes mundiais percebessem os erros do passado e não os repetissem. Ainda assim, a guerra na Síria não acabaria em 2016 mas...

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