Sim, fomos mentirosos e tendenciosos

FICÇÃO POLÍTICA. Fomos tendenciosos pela melhor das razões. Há os adeptos estúpidos de "o fim do mundo vem aí" e os maravilhosos heróis de "se calhar nem vai haver fim do mundo" - e nós escolhemos um dos lados. É preciso dizer qual?
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Como foi anunciado no primeiro episódio, o Folhetim do DN seria (e foi) mentiroso e tendencioso. Tínhamos um dever para com a verdade: em política, como em tudo, a realidade esclarece-se melhor com ficção. Éramos ambiciosos na procura da exatidão mas, confessamo-lo, não esperávamos fazer escola tão cedo.

Ontem, na sua habitual crónica no Expresso, Miguel Sousa Tavares escreveu: "Tive a sorte de ter estado infiltrado, como mosca, no gabinete do ministro Mário Centeno, nesta semana..." E depois ele descreveu uma longa conversa entre o ministro, a Catarina Martins e o Jerónimo de Sousa, com aspas e tudo. Seja dito, o M.S.T. não é uma mosca, até é dos tipos menos dípteros braquíceros que escrevem nos jornais. Mais, aquela reunião não aconteceu (o Folhetim do DN confirmou com os próprios) nem aquelas palavras foram ditas. E, no entanto, o diálogo foi verdadeiro. Era aqui que queríamos chegar: também este folhetim com a mentira não vos enganou.

E também fomos tendenciosos. Logo a abrir, a imagem com que nos apresentámos, e repetimos na página deste último episódio, foi a do terceiro painel do tríptico A Nau Catrineta, de Almada Negreiros. O primeiro painel é de uma desgraça pegada, a nau passa fome e roça o canibalismo, e o segundo é de esperança desesperada, perto do encolher de ombros. Já o terceiro painel, o nosso, é a declaração assumida de que isto vai, porque tem de ir.

Também podíamos ter escolhido para estandarte as palavras do capitão Cristiano Ronaldo a mandar o Moutinho bater o penálti. Acabámos por escolher o terceiro painel de Almada, porque este diz o mesmo e de forma mais sóbria - sim, os portugueses são capazes de conseguir. Além de que Almada é um homem desta casa (pintou-nos os frescos da entrada).

Fomos tendenciosos pela melhor das razões, por assumida opinião preconceituosa. Há os adeptos estúpidos de "o fim do mundo vem aí" e os maravilhosos heróis de "se calhar nem vai haver fim do mundo" - e nós escolhemos um dos lados. É preciso dizer qual? Era, por isso chamámos ao folhetim Palácio de Verão, uma doçura a contrapor aos cangalheiros dos palácios de inverno que têm de ser sempre tomados com muito sangue ou muito sacrifício. Este folhetim se calhar não seria escrito se não fôssemos campeões europeus e seguramente não o seria se o Presidente não fosse Marcelo Rebelo de Sousa. Em vez da luta de classes, o chuta com classe.

Sendo campeões e com Marcelo - que não inventaram nada, aliás, só se deixaram ir na esteira do que somos - aceitámos ser Pangloss ("vivemos no melhor dos mundos possível") por 35 dias. Porque isto de folhetins é para ser tomado às colheres. Agosto e um niquinho é o tempo certo para se ser cândido. E, enquanto se foi, acreditar que havia em curso um amplo movimento para assumir a moderação portuguesa como uma qualidade explosiva e única.

[destaque:Aquele fulano, do painel de Almada, de chapéu cinzento, óculos e barba negra que segura um molho de papéis, foi a mosca que entrou nos episódios narrando o que não aconteceu]

Aquele fulano, do painel do Almada, de chapéu cinzento e barba negra que segura um molho de papéis, foi a mosca que entrou nos episódios narrando o que não aconteceu. Como, sobre a geringonça, lhe resumiu Marcelo logo no início: "Às vezes as coisas começam mal, continuam na mesma, mas é o que temos. O importante é insistir e ter fisgado o ir para a frente." O facto de se ter dois centrais, PR e PM, a jogar para a mesma seleção, livrou-nos de empates óbvios - não houve sanções. E de derrotas pesadas: há um mês, Espanha via-se a chegar a setembro sem governo, não ter Orçamento e ter de pagar seis mil milhões de euros de multa. Hoje, confirmou-se que vai ser assim. O folhetim contou a conversa de Marcelo e Costa sobre o assunto, falsa, mas que certamente não deixaram de ter.

A adesão do BE e do PCP à plena responsabilidade parlamentar - deixarem de ser só bota-abaixo e comprometerem-se com um governo - era um facto maior da política nacional. Mas os jornais sérios preferiam ser cúmplices dos que o sabotavam, à direita. Ou cúmplices, à esquerda, das direções bloquistas e comunistas que passavam para o seu interior a ideia de continuarem duros oposicionistas. Daí, as cenas macacas de Catarinas e Jerónimos com meias-frases com punhos no ar. O folhetim preferiu inventar comprometimentos do BE e do PCP com o governo, e até para as autárquicas. Talvez maiores do que eram na espuma dos factos, mas certamente mais próximos do movimento tectónico que anima a vida política portuguesa desde as eleições de outubro de 2015.

Da esquerda à direita, o cândido folhetim incentivou e exagerou tudo que fossem alianças e compromissos. Um amigo desta página, o embaixador Francisco Seixas da Costa, inventou um episódio no seu blogue (Duas ou Três Coisas), em que o autor do Palácio de Verão era convidado por Marcelo e Costa para continuar a ser casamenteiro. O problema é que o autor é cético no resto do ano.

FIM. Leia os episódios anteriores do Folhetim de Verão

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