Uma história com muito para contar (Episódio 1)

FICÇÃO POLÍTICA. Durante agosto, todos os dias, o DN vai publicar um folhetim político. Tudo inventado, claro. Mentira assumida e ambiciosa: em política como em tudo, a realidade esclarece-se melhor com ficção
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No Palácio de Belém há um tríptico de tapeçaria que cobre uma das paredes da Sala Império. Eu aguardava audiência com o Presidente e não prestei muita atenção à obra. Por sms havia dito a Marcelo Rebelo de Sousa que ia escrever o folhetim de verão do meu jornal, com histórias inventadas mas que requeriam pequenos pormenores verdadeiros que dão sinceridade a uma mentira assumida. - Podia ajudar?, perguntei-lhe. Mandei-lhe a mensagem numa meia-noite, e às 5 da manhã tinha a resposta: "Pátio das Damas, hoje, às 18."

O meu problema era simples. No ano passado eu já fizera um folhetim político, publicado ao longo de agosto. Mas esse foi um ano dramático, com legislativas no desembocar da silly season e, logo depois, a campanha presidencial. Então, a ficção política pôde ser teatral, os atores e os espectadores estavam virados para aí. Ora, este 2016 escoava ronceiro, ainda mais brando do que a fama que se costuma emprestar aos nossos costumes. Sim, sim, eu sei da tragédia do sistema bancário, mas os bancos não são personagens de folhetim. O que me interessava era a política. E esta era o bocejo do ménage à trois, imprevisto mas conseguido, e da paralisação pasmada da oposição que durava há meses - na cúpula de tudo, um bem-amado. Como é possível fazer ficção política sem fricção na política?

Eis porque estava eu ali, recapitulando os propósitos que ia defender: sou folhetinista e exigia respeito pelos meus direitos às notícias picantes, às crises galopantes, aos sustos nacionais. Tanta modorra cansa. Ainda nessa semana, o episódio das sanções da UE, grávido de uma boa crise e de governo tremido, tinha esvaziado: multa zero. E o Presidente pôde resumir: "A crise política evaporou-se." Para o país, tudo bem. Eu é que não vivia de ar nem de sanções secas.

[destaque:Na tapeçaria de Almada A Nau Catrineta, pendurada numa sala do Palácio de Belém, o jornalista, barba negra, óculos e chapéu cinzento, lia os seus apontamentos...]

Eu invejava a tensão da França, com o sistema político a preparar-se para a filha Le Pen. Em Espanha, o impasse levava sete meses e os chefes partidários pareciam antigos anarquistas locais: "Hay gobierno? Soy contra." E o brexit, então, esse era para lá de toda a imaginação: os partidos criaram o caos e, instalado este, os líderes demitiram-se com o orgulho da obra feita...

É verdade que só em França os criadores se aproveitaram já das ofertas da classe política. O Netflix produziu uma série televisiva, Marselha, com Gérard Depardieu, e as editoras inundam as livrarias de ficções-políticas (o título de uma delas dá conta do género: O Sismo, Marine Le Pen Presidente). Mas o brexit e o estilhaçar de Espanha em nações - os factos - continuam a fornecer matéria-prima para a imaginação. Os sociólogos explicam a tendência: em política, como em tudo, a realidade faz mais sentido através da ficção. Sorte a dos europeus, com boa matéria para emoções... Só nós, não.

Apesar da fama de pontualidade, o dono da casa tardava a chamar-me. Sentei-me num sofá e passeei o olhar distraído pela tapeçaria. No terceiro painel, dei com um trio de observadores. O do meio, obviamente jornalista, lia os apontamentos que tirara. Barba negra e forte, óculos e um chapéu fedora cinzento de fita preta, parecia Philémon Ciclone, egiptólogo e doido varrido, personagem de Tintim, no álbum Os Charutos do Faraó. Neste, o repórter Tintim perde por vezes a noção da realidade. Lembrei-me logo disso quando da tapeçaria escorregou, da resma que o jornalista segurava, uma folha. Vi, juro. Ela veio voando, calma, até pousar no soalho da Sala Império.

Olhei à volta, ninguém. Apanhei o papel e li: "Também vejo três meninas,/ debaixo de um laranjal./ Uma sentada a coser,/ Outra na roca a fiar,/ A mais formosa de todas,/ está no meio a chorar." Reconheci os versos de A Nau Catrineta. Voltei à tapeçaria e às imagens com que Almada Negreiros contou a desventura da viagem marítima, uma história de pasmar. No primeiro painel, o barco perdido e ameaçado pelo défice excessivo, os marujos sem nada que manjar deitaram sortes e calhou ao capitão general ser comido. Mas, no segundo painel, o gajeiro subiu ao mastro real e viu terras de Portugal. O terceiro, no qual o meu jornalista tomava notas, era o do encontro do capitão e as três filhas, a alegria, com muito povo. O capitão quis ofertar ao gajeiro uma filha, o cavalo, o que quisesse. Mas ele só quis a nau catrineta, para continuar a viajar...

Uma história antiga, do romanceiro de Quinhentos, recolhida por Garrett, pintada em fresco por Almada Negreiros (está na Gare Marítima de Conde de Óbidos) e, a partir da pintura, feita tapeçaria em Portalegre para ser pendurada no Palácio de Belém... Dei por mim a matutar: e se a história da Nau Catrineta não fosse tão antiga assim?... Antes, porém, de concluir sobre o sentido da mensagem que o tríptico me enviou, fui interrompido pelo ajudante de campo. O Presidente esperava-me.

De pé, no centro gabinete, Marcelo ainda viu a folha de papel que eu dobrava e metia ao bolso. Fez um sorriso malicioso e estendeu-me a mão.

(CONTINUA AMANHÃ)

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