Estamos no ambiente apertado de uma pequena casa, quase uma barraca, onde vivem cinco pessoas que arranjam espaço para mais uma menina recém-chegada. Temos então um pai, uma mãe, uma jovem, duas crianças e a avó, que assume a posição de matriarca. Por todo o lado há tralha empilhada e a abundância de texturas dá uma sensação de calor doméstico - que combina com o facto de, na maior parte do tempo, essas pessoas andarem de pijama e a comer noodles instantâneos para manter o estômago quente... Estes são os Shibata, como diz o subtítulo português de Shoplifters, uma família de pequenos ladrões, a viver nos subúrbios de Tóquio..Fala-se aqui da família como lugar de intimidade ou simples estrutura social? Segundo o dicionário, é um "conjunto de pessoas com relação de parentesco que vivem juntas". E não se pode dizer que, na aparência, os Shibata não correspondam a esta módica descrição, dentro das suas características singulares. Mas o cinema de Hirokazu Kore-eda já ultrapassou há muito a abstração dos enunciados linguísticos. Pelo contrário, há uma sabedoria acumulada de filme para filme, em torno da noção de família e do questionamento dos vínculos humanos, que confere à sua nova obra um efeito de vitalidade superlativa. Por alguma razão o seu nome é um dos mais respeitados da produção japonesa contemporânea..Shoplifters apresenta-se assim por via do quadro tradicional da família, para progressivamente ir desconstruindo a ideia de normalidade dos laços. As coisas não são exatamente o que parecem - mesmo que à partida já não sejam muito normais. Desde logo, o pai é uma versão japonesa do carteirista Fagin de Oliver Twist, levando consigo, nas expedições ao supermercado, o rapazinho lá de casa, que rouba os bens essenciais (e não só) para o quotidiano familiar, numa dinâmica muito bem concertada com ele. Por sua vez, a mãe, que trabalha numa lavandaria industrial, não perde uma única oportunidade para larapiar qualquer objeto perdido nos bolsos da roupa que lhe passa pelas mãos. Já a doce e frágil jovem do clã contribui para as finanças trabalhando num clube que funciona por serviço de cabinas de striptease com vidros fumados. Quanto à avó, tem uma pensão mensal (a atriz veterana que a interpreta, Kirin Kiki, morreu em setembro passado, e até por isso o seu papel sustenta uma especial dimensão dramática)..À fotografia vai juntar-se a pequena Yuri, uma menina encontrada uma noite na varanda de uma casa, cheia de frio e com marcas de violência doméstica. É também um roubo? Do ponto de vista da lei, sem dúvida, mas a compaixão por trás deste ato é mais forte do que as normas de conduta social. De resto, toda a vivência dos Shibata é filtrada por uma vulnerabilíssima consciência moral, que é passada às crianças..Em Shoplifters, Kore-eda filma o melodrama familiar com traços muito subtis entre o tecido cru da realidade e a beleza tímida das emoções. O grupo que seguimos na expressão de uma rotina instalada - e com nuances psicológicas reveladas nomeadamente pela presença da pequena Yuri - vai, pouco a pouco, deixando à vista as fendas da grande invenção que é este retrato de família. A questão que se coloca no filme é saber se o determinismo das relações biológicas pode, de algum modo, ser substituído por uma alternativa. Mas, para testar isso, Kore-eda põe lado a lado o amor fraterno e o crime. É no balanço de um e de outro que o filme extrai a complexidade do seu olhar cinematográfico..Na memória de outros filmes de Kore-eda, dir-se-ia que Shoplifters é uma junção do conceito reinventado de família que se vê em Ninguém Sabe (2004) com o dilema entre os laços biológicos e afetivos de Tal Pai, Tal Filho (2013). Os gestos, olhares e silêncios das crianças são, aliás, o barómetro de qualquer situação. Elas transformam os detalhes em demonstrações claras dos sentimentos mais subterrâneos, desenhando a ocasião para uma lágrima surgir espontaneamente. E a profunda delicadeza do cineasta japonês manifesta-se tanto na captação destes detalhes, como na abordagem do humanismo pelo seu ângulo menos fácil. Se é possível dizê-lo desta forma, Shoplifters é uma magnífica dor de alma..Classificação: **** Muito bom
Estamos no ambiente apertado de uma pequena casa, quase uma barraca, onde vivem cinco pessoas que arranjam espaço para mais uma menina recém-chegada. Temos então um pai, uma mãe, uma jovem, duas crianças e a avó, que assume a posição de matriarca. Por todo o lado há tralha empilhada e a abundância de texturas dá uma sensação de calor doméstico - que combina com o facto de, na maior parte do tempo, essas pessoas andarem de pijama e a comer noodles instantâneos para manter o estômago quente... Estes são os Shibata, como diz o subtítulo português de Shoplifters, uma família de pequenos ladrões, a viver nos subúrbios de Tóquio..Fala-se aqui da família como lugar de intimidade ou simples estrutura social? Segundo o dicionário, é um "conjunto de pessoas com relação de parentesco que vivem juntas". E não se pode dizer que, na aparência, os Shibata não correspondam a esta módica descrição, dentro das suas características singulares. Mas o cinema de Hirokazu Kore-eda já ultrapassou há muito a abstração dos enunciados linguísticos. Pelo contrário, há uma sabedoria acumulada de filme para filme, em torno da noção de família e do questionamento dos vínculos humanos, que confere à sua nova obra um efeito de vitalidade superlativa. Por alguma razão o seu nome é um dos mais respeitados da produção japonesa contemporânea..Shoplifters apresenta-se assim por via do quadro tradicional da família, para progressivamente ir desconstruindo a ideia de normalidade dos laços. As coisas não são exatamente o que parecem - mesmo que à partida já não sejam muito normais. Desde logo, o pai é uma versão japonesa do carteirista Fagin de Oliver Twist, levando consigo, nas expedições ao supermercado, o rapazinho lá de casa, que rouba os bens essenciais (e não só) para o quotidiano familiar, numa dinâmica muito bem concertada com ele. Por sua vez, a mãe, que trabalha numa lavandaria industrial, não perde uma única oportunidade para larapiar qualquer objeto perdido nos bolsos da roupa que lhe passa pelas mãos. Já a doce e frágil jovem do clã contribui para as finanças trabalhando num clube que funciona por serviço de cabinas de striptease com vidros fumados. Quanto à avó, tem uma pensão mensal (a atriz veterana que a interpreta, Kirin Kiki, morreu em setembro passado, e até por isso o seu papel sustenta uma especial dimensão dramática)..À fotografia vai juntar-se a pequena Yuri, uma menina encontrada uma noite na varanda de uma casa, cheia de frio e com marcas de violência doméstica. É também um roubo? Do ponto de vista da lei, sem dúvida, mas a compaixão por trás deste ato é mais forte do que as normas de conduta social. De resto, toda a vivência dos Shibata é filtrada por uma vulnerabilíssima consciência moral, que é passada às crianças..Em Shoplifters, Kore-eda filma o melodrama familiar com traços muito subtis entre o tecido cru da realidade e a beleza tímida das emoções. O grupo que seguimos na expressão de uma rotina instalada - e com nuances psicológicas reveladas nomeadamente pela presença da pequena Yuri - vai, pouco a pouco, deixando à vista as fendas da grande invenção que é este retrato de família. A questão que se coloca no filme é saber se o determinismo das relações biológicas pode, de algum modo, ser substituído por uma alternativa. Mas, para testar isso, Kore-eda põe lado a lado o amor fraterno e o crime. É no balanço de um e de outro que o filme extrai a complexidade do seu olhar cinematográfico..Na memória de outros filmes de Kore-eda, dir-se-ia que Shoplifters é uma junção do conceito reinventado de família que se vê em Ninguém Sabe (2004) com o dilema entre os laços biológicos e afetivos de Tal Pai, Tal Filho (2013). Os gestos, olhares e silêncios das crianças são, aliás, o barómetro de qualquer situação. Elas transformam os detalhes em demonstrações claras dos sentimentos mais subterrâneos, desenhando a ocasião para uma lágrima surgir espontaneamente. E a profunda delicadeza do cineasta japonês manifesta-se tanto na captação destes detalhes, como na abordagem do humanismo pelo seu ângulo menos fácil. Se é possível dizê-lo desta forma, Shoplifters é uma magnífica dor de alma..Classificação: **** Muito bom