Shakespeare & Cervantes: Os paralelos do génio
Quis o destino, ativado pela diabetes de Miguel de Cervantes e por uma febre mal explicada de William Shakespeare, na sequência de uma sessão de excessos alcoólicos, que se juntassem no dia em que a morte passou para cobrar o que lhe é devido, independentemente dos méritos dos seus alvos: a 23 de abril de 1616, o espanhol morria em Madrid e o inglês na sua Stratford-upon-Avon natal. Se fosse hoje, época em que alguns grandes autores literários se assemelham, no comportamento e no alcance, a estrelas pop bem situadas no carnaval mediático, podemos supor que trocariam mensagens (até por correio eletrónico) e que acabariam por encontrar-se numa qualquer feira do livro. Mas, como tudo se passou entre os séculos XVI e XVII - em que, imagine-se, ainda não estavam à disposição os mails e os telemóveis -, viveu cada um para seu lado, e de formas bem distintas, se olharmos para as respetivas biografias.
Quando Shakespeare nasceu, a 26 de abril de 1564, em Stratford-upon-Avon, a sul de Birmingham, Cervantes estava a caminho dos 17 anos, depois de ter visto a luz do dia, a 29 de setembro de 1547, em Alcalá de Henares, hoje integrada na região de Madrid. Significa isto que os dois atravessaram a infância em momentos distintos, muito embora possam considerar-se complicadas, em ambos os casos. Miguel viu-se obrigado a seguir a família - os pais e três irmãos mais velhos, Andrés, Andrea e Luísa, a que, mais tarde, se juntariam outros tantos, mais novos, Rodrigo, Magdalena e Juan - até Valladolid. O motivo estava longe de ser agradável: o pai, Don Rodrigo, já enfrentara algumas temporadas na prisão, por dívidas, e esse "exílio" é interpretado como uma forma segura de evitar que o encarceramento se repetisse e serviu, também, para que pudesse reclamar uma herança e equilibrar as finanças familiares. Curiosamente, a questão económica haveria de perseguir Miguel em vários capítulos da sua atribulada existência, também com direito a fugas e prisões.
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No caso do jovem William, cuja família nunca terá conhecido privações, uma vez que os negócios do pai, John, corriam bem e eram diversificados: se a sua ocupação principal dizia respeito ao fabrico de luvas, com loja estabelecida no centro de Stratford, também se dedicava ao comércio de animais, à agricultura, ao "ramo imobiliário" e, inclusivamente, ao empréstimo de dinheiro a juros. Por outras palavras, à agiotagem. Se, nesse quadro, Shakespeare sempre respirou tranquilidade, o seu futuro foi ameaçado por diversos surtos de peste em Stratford, que chegaram a obrigar os pais a enviá-lo por uns tempos para casa de familiares, no campo. A outra nuvem que pairou sobre o jovem tinha que ver com sinais dos tempos: em pleno reinado de Isabel I, apertava-se o cerco aos que não trocassem o catolicismo pelo culto da Igreja Anglicana, fundada por Henrique VIII. Acontece que John Shakespeare era católico e, mesmo chegando a iludir a vigilância que lhe era dirigida, acabaria por cair em desgraça.