Berlin Alexanderplatz, de Burhan Qurbani.Foi um dos títulos em competição no último Festival de Berlim e é o primeiro a ficar disponível na Filmin a partir desta quinta-feira (toda a restante programação da KINO cai na plataforma no dia seguinte). Adaptado do romance seminal de Alfred Döblin, uma das obras maiores da literatura alemã que Rainer Werner Fassbinder levou à televisão na operática série homónima de 1980, Berlin Alexanderplatz surge como uma "atualização" ou versão contemporânea dessa história passada nos anos de 1920..Aqui, Burhan Qurbani, realizador alemão de origem afegã, trocou o infortúnio de um ex-recluso acabado de sair da prisão pelo de um refugiado africano chegado a Berlim e que procurou no submundo da cidade dos dias de hoje notas de tragédia grega que se colam à pele escura e brilhante de Welket Bungué, o ator luso-guineense tornado ponto nevrálgico de uma visão dramaticamente robusta. De resto, ele é mesmo a grande revelação dentro da máquina narrativa, um homem que só quer ser bom num mundo corrompido e acaba apanhado na teia de um traficante de droga com intenções ambíguas..Dividido em cinco partes, este filme acompanha o destino do anti-herói, Francis (Bungué), até ao seu encontro com uma prostituta angelical, Mieze (Jella Haase), figura do amor - e narradora etérea em off - que será a fonte de luz num percurso sem ponto de retorno. E se é verdade que Qurbani filma essa nefasta jornada com um sopro moderno de elegância noturna, tentando aproximar-se da envergadura trágica da obra original, os resultados são garantidos por Bungué e o seu corpo-manifesto perdido na ficção de um labirinto imoral com ecos da realidade..Exílio, de Visar Morina.Também Exílio reflete de forma muito singular sobre a condição do imigrante - seja na Alemanha ou em qualquer lugar. O protagonista, um engenheiro químico nascido no Kosovo (tal como o realizador Visar Morina), é alguém que vive diariamente situações de discriminação no ambiente de trabalho, seja um simples "lapso" alheio por não ter sido incluído na mailing list da empresa ou a vaga humilhação de ter de soletrar várias vezes o nome sempre que se apresenta. A coisa torna-se mais grave, porém, quando começam a aparecer ratos mortos pendurados em maçanetas de portas e na caixa do correio....O dispositivo do thriller psicológico está montado num filme que lida cirurgicamente com um quadro social. Mas Morina não está interessado em comentar esse quadro social. O espectador fica por sua conta num território que evoca a frieza dos filmes do austríaco Michael Haneke, sobretudo quando Exílio toca com o bisturi no cenário doméstico. Sem pestanejar, o ator Misel Maticevic é um dos alicerces do desconforto, entre a expressão estoica e os sintomas de paranoia miudinha. Um bom estudo de caso, no mínimo, desconcertante.. Em Nome de Xerazade ou O Primeiro Beergarden no Teerão, de Narges Kalhor.Com papéis principais ou não, os imigrantes estão presentes em quase todas as obras programadas nesta edição da KINO. No caso do documentário Em Nome de Xerazade ou O Primeiro Beergarden no Teerão - título que condensa a amálgama do empreendimento - temos uma iraniana, estudante de realização na Alemanha, que tenta responder ao propósito de um "filme político", ao mesmo tempo que explora o choque entre Ocidente e Oriente numa perspetiva de exotismo cultural..Começa-se por As Mil e Uma Noites, claro, passa-se pela experiência da realizadora na Escola de Cinema de Teerão, em 2003, há também uma cervejeira iraniana e outras personagens secundárias que, no fundo, são tópicos de ensaio de quem está à procura do seu próprio filme. Isso mesmo: Em Nome de Xerazade é uma divagação tão experimental quanto íntima, um exercício que interroga sobre a melhor maneira de contar uma história, e que pelo caminho lança um olhar desarrumado e divertido às diferenças civilizacionais, nomeadamente através da cerveja... Com e sem álcool..Irmãzinha, de Stéphanie Chuat e Véronique Reymond .Nina Hoss, a atriz conhecida do público português como musa do cineasta alemão Christian Petzold (Phoenix, Barbara), interpreta aqui uma escritora, casada e com filhos, a braços com a doença terminal do irmão gémeo (Lars Eidinger), um ator de teatro que ansiava subir ao palco uma última vez para retomar o seu papel de Hamlet..Irmãzinha foca-se nesse compasso de espera com discretas sombras shakespearianas e, sem abusar do drama já de si contido no argumento, a câmara da dupla suíça Stéphanie Chuat e Véronique Reymond sonda os laços de família através do ponto de desordem emocional em que vai assentar uma derradeira prova de amor fraterno. Apesar disso, não há técnicas descaradas para puxar à lágrima nem mensagem de conforto, apenas uma circunstância realista que se assemelha aos bolos ligeiramente queimados da mãe dos dois protagonistas.. Diz-me Tu então, de Michael Fetter Nathansky.Na mesma linha da relação de irmãos, Diz-me Tu então começa com o regresso de uma mulher à casa da irmã que terá sido atacada por um estranho numa ponte. Ela está ali para a proteger, ao mesmo tempo que investiga por conta própria a identidade do atacante. E à medida que se avança, numa estrutura dramática de três perspetivas humanas - das duas mulheres e do suposto culpado -, o filme desenha uma coreografia entre vítimas e ofensores que se renova a cada momento em direção a uma melancólica verdade.. Casulo, de Leonie Krippendorff.Há ainda histórias de coming-of-age no programa da KINO. Num verão berlinense, o corpo de uma tímida adolescente, Nora, começa a transformar-se. E com a primeira menstruação vem um despertar sexual que não corresponde às experiências masculino/feminino visíveis à sua volta: num constante perfil de observadora silenciosa, ela sente-se atraída pela rapariga mais gira e arrapazada da paisagem escolar (Jella Haase, a mesma atriz de Berlin Alexanderplatz), que a leva na sua primeira viagem dos sentidos..Casulo é, assim, uma simples narrativa de dores de crescimento e descoberta da sexualidade, sem inquietações para além das inerentes à passagem natural para um novo estádio. Aliás, com a devida sensibilidade e estética indie, tudo aqui serve para ilustrar a metáfora da lagarta que se metamorfoseia em borboleta.. Golpe de Sorte, de Peter Payer.Para quem está numa de comédia negra, a produção austríaca Golpe de Sorte marca pontos naquele típico retrato do casamento estável e dormente que precisa de alguma animação fora de portas. O protagonista, um ilustrador que se arrasta pelos dias, é "perturbado" por uma bela e jovem mulher que lança o isco só para o conduzir num rol de situações mais ou menos estranhas na ausência temporária da esposa deste. Entre os dois lados femininos, um alegremente alheado, o outro parasita, a intriga ganha uma configuração de simetria um tanto aflitiva para o homem metido em maus lençóis (pode haver sangue...), mas não há nada que não se ultrapasse com uma dose simpática de ironia conjugal pouco ortodoxa. Chama-se a isto brincar com a sorte.