Sérgio Godinho: "Quando ouvi Jorge Palma pela primeira vez pensei: 'Temos homem!'"
A casa dele é sossegada como se não estivéssemos no coração de Lisboa. Tem um piano vertical na sala mas avisa logo que raramente toca. As paredes mostram quadros dos muitos amigos deste homem que aos 70 anos continua a ser um rapaz. O sossego talvez venha da arrumação clara dos objetos acumulados numa vida feita de muitas histórias e muitas viagens. Simples e direto, como as letras das canções, articulado com a limpidez com que canta. Logo ao princípio da conversa, uma surpresa: "Estou a escrever um romance". Começamos pelo disco que é agora lançado, Juntos, uma gravação do concerto no Theatro Circo de Braga. "Não é só um disco, também é um DVD", corrige.
O Sérgio e o Jorge Palma juntaram-se para uma série de concertos e agora está aí a gravação. Como foi esta aventura?
É um projeto que tínhamos desde sempre. Temos uma admiração mútua musical. Somos amigos desde 1975 ou 76 e engrenámos logo. Tinha saído um disco dele chamado Até já. Quando ouvi, disse logo: "Eh pá, isto temos homem, aqui!" Bom músico, bom cantor, bom letrista. Sempre foram naturais as trocas entre nós. Ele convidou-me para cantar Na Terra dos Sonhos num disco já antigo, e eu convidei-o para espetáculos, e depois para O Irmão do Meio. Mas nunca tínhamos feito um projeto de fôlego. Decidimos ir para a frente, passámos a ver-nos muito mais do que antes.
Não tiveram dificuldade em acertar horários? O Sérgio é mais diurno, o Jorge mais noturno.
Há algumas dificuldades de horários, tinha de ser à tarde. Nunca fui muito noturno, não sou de me deitar tarde. Mas é à noite que consigo trabalhar. Agora estou a escrever um romance e escrevo sobretudo à noite.
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Como reage o público ao vosso concerto? É muito amigável?
Muito. Sentem que é um universo a que também pertencem, ou a dois universos. Uns talvez mais próximos do Jorge, outros de mim, mas penso que toda a gente que gosta das minhas canções aprecia o trabalho do Jorge. E há os que são fãs incondicionais dos dois.
No disco, percebe-se que as pessoas reagem, conhecem as músicas, cantam convosco.
Sim, e muito emocionadas. Há mesmo pessoas que vêm dizer no fim: "Fizeste-me chorar" É uma reação muito emotiva e isso é bom. O conceito - enfim, não inventámos nada - é estarmos ambos presentes em todas as canções e acontece várias vezes que um começa a canção do outro. Isso dá um kick de estranheza, porque é reconhecível mas está a ser cantado , não de uma maneira radicalmente diferente, mas por outra voz. Dá-me um grande prazer atacar o Dá-me Lume ou outras canções do outro universo. Afinal, sempre gostei de cantar canções dos outros, até fiz as Caríssimas Canções, tudo material de outros. Isso vem na sequência do livro Sérgio Godinho e as 40 Ilustrações.
Depois das crónicas publicadas no Expresso?
Comecei por fazer crónicas para o Expresso. Escolhi serem 40, porque fazia 40 anos de canções. Depois o João Paulo Cotrim, que estava a começar a editora Abysmo, começou com o livro dos ilustradores, e fizemos as Caríssimas 40 Canções, um livro muito bonito. O CCB convidou-me para um concerto, e fiz esse projeto em palco.
Diz que é um escritor de canções. Também escreve ficção, livros para crianças.
Sim, fiz O Pequeno Livro dos Medos, A Caixa, uma peça infantil que foi premiada - Eu, Tu, Ele, Nós, Vós... Eles! - que foi muito representada. A escrita de canções é uma escrita específica porque joga com duas artes, duas formas de expressão diferente.
Escreve primeiro a música?
Geralmente começo pela música e depois vêm as palavras. Porque as palavras já vêm grafadas a uma cadência musical, a uma dinâmica, a uma necessidade métrica imposta pela música. Essa é a lógica. É como partir do abstrato para o concreto. N"O Pequeno Livro dos Medos, comecei por fazer as ilustrações. Primeiro eram manchas e depois comecei a encontrar sentidos, a ver caras. Vejo muitas vezes caras nas manchas, é uma coisa um bocado obsessiva.
Descobri sentidos nessas manchas e depois joguei com a história que estava, ao mesmo tempo, a inventar. É comparável a vir de um conteúdo que não é tão concreto, como a música, para depois pôr sentidos, palavras, frases, uma situação ou personagens.
Conta histórias nas canções muitas vezes...
Não são histórias no sentido fechado, não têm princípio, meio e fim. São personagens postas numa determinada situação.
E tem uma capacidade de síntese das frases, no uso das palavras. Isso sai naturalmente?
Há repentes, mas é muito depurado. Não sou imediatista. O Carlos do Carmo conta que o Ary dos Santos fazia três letras numa noite. Pode sair-me uma mais rápida mas, geralmente, é um processo. A primeira aproximação é mais banal. Está aqui a ideia e depois vou encontrar uma forma que me é mais particular.
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As ideias surgem de onde? Episódios que presencia?
É muito simples e variado. Coisas que leio, uma frase comum. Hoje Soube-me a Pouco - isto não é nada, mas extrais do banal alguma coisa que se torna significante. Jogo muito sobre esse outro sentido das frases de todos os dias. Numa canção que tenha um refrão, em princípio imutável, a frase vai mudando dinamicamente mudada. São técnicas que têm muitos séculos e que aprendi intuitivamente. Mesmo musicalmente - não tenho educação musical.
Li numa entrevista que a sua primeira gravação é a tocar piano, com 12 anos. Não estudou?
A minha mãe tinha o curso superior de piano. Tocava coisas muito difíceis, em casa, e era um grande prazer. Continuei ligado à música erudita, tenho isso no sangue. Estudei dois ou três anos de piano, com uma professora amiga da minha mãe, no Porto, quando tinha 11 ou 12 anos. Ela era muito boa pessoa mas aquilo era um bocado chato. Se calhar foi preguiça minha. Arrependo-me, até hoje, de não tocar piano. Estou mais do que conformado, mas quando olho para aquela agilidade do Jorge no piano... O meu tio, o irmão da minha mãe, tocava buggy-huggies, animava as festas. Para mim, o piano é o instrumento que tem sonoridades afetivamente mais próximas.
Mas toca guitarra, não é?
Aos 15 anos, nas férias, trabalhei um mês no escritório do meu pai, fiz coisas chatíssimas. Comprei a primeira guitarra com o dinheiro que ganhei.
E aprendeu sozinho?
Aprendi sozinho, com os songbooks das músicas dos outros. Fui adquirindo o know-how: os acordes, a sucessão de acordes, a sequência harmónica. E depois veio a letra. Fazer canções foi sendo empírico. Agora há manuais de como fazer canções, até para fazer uma hit song. Mas se fosse tão fácil toda a gente fazia... às vezes parece que uma vai funcionar e não funciona. E há surpresas, há aquela canção que funciona. Continua a ser esse mistério, depois de milhões e milhões de canções que foram feitas.
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Como é que há sempre coisas novas, surpreendentes?
É o mistério da música, é espantoso, porque são só doze notas - sete mais os sustenidos. E depois são dinâmicas, pausas, ritmos, combinações das notas... Isto explica-se numa página, basicamente, e depois há tudo o resto.
O que é tudo o resto?
É toda essa elaboração, essa capacidade infinita de renovação com uma ferramenta tão exígua.
E depois há a voz.
Sempre gostei de cantar, porque se cantava muito lá em casa. O meu pai também era melómano. Ele viajava bastante e trazia discos de música francesa, americana, inglesa, brasileira. Havia uma costela brasileira na família, eu sou neto de uma brasileira, do lado da minha mãe. Cantava-se em casa, no carro. Cantar e representar, dizer em voz alta. A minha avó paterna tinha sido atriz, tinha um programa de rádio em que dizia poesia. Dizia muito bem, tinha uma voz muito bonita e nada enfática. Sempre tive uma paixão pelo teatro, pela representação. E depois pelo cinema.
Ainda tem medo do palco?
Não posso dizer que tenho medo do palco. Tenho um sentido de responsabilidade. Antes dos espetáculos há um momento em que tenho de estar sozinho, de porta fechada. Tenho de fazer a transição para outro tipo de situação. Sou eu mas é uma outra persona que entra no palco. Há algo transformador naquele momento em que tu passas dos bastidores para o palco, para a luz e para as palmas. Estás a receber e a dar essa energia.
Uma coisa é um espetáculo coletivo, outra é estar sozinho...
As pessoas vão lá basicamente para me ver ou, no caso com o Jorge, para nos ver. E depois há a energia e o saber dos músicos. Não faço espetáculos sozinho, até porque não toco suficientemente guitarra. Não gosto de estar agarrado a um instrumento, tenho necessidade de me mexer. Mas ser esse foco dá uma responsabilidade acrescida. Nos espetáculos há uma energia e uma emoção muito próprias. Temos de nos deixar soltar mas ter ao mesmo tempo a rédea curta. Senão, esqueces-te, desafinas ou fazes figura de tolo. No estúdio é ao contrário. Um estúdio é um buraco negro que suga as tuas energias: estás a repetir incessantemente, a repetir bocadinhos, a fazer em layers, em fatias. Aí, tens de puxar as energias para cima como se estivesses ao vivo.
"Manter a rédea" é mais difícil nos concertos com o Jorge Palma? Estão os dois a partilhar, o público está a gostar e é preciso manter o rigor?
É preciso ter cuidado, manter o rigor e não desfocar. Quando se começa a falar muito pode ser-se errático, é como se deslassasse a maionese. Tenho uma canção, Tem o Seu Preço, que fiz para o Teatro Praga, com a frase: "Andar à solta, criar laços nesta vida." É uma espécie de filosofia de vida. Estar no palco também é estar à solta mas ter sempre laços com o público e o laço com a nossa maneira de estar ali.
Trabalhou com muita gente, de idades e estilos diferentes...
No caso dos Três Cantos foi com o Zé Mário Branco, que é mais velho, eu era o irmão do meio, e o Fausto um bocadinho mais novo.
Os três da mesma geração, mas também se juntou com gente muito mais nova...
Não gosto muito da ideia de geração. Realmente foram quase sempre mais novos e mais de metade das vezes vieram ter comigo.
Não gosta da ideia de geração?
Não é uma coisa com a qual me relacione. Quando engreno com pessoas de 25 ou 40 anos, há um universo comum. Eu sei coisas que eles não sabem e eles sabem coisas que eu não sei, sobretudo as referências.
Convidou a Capicua para cantar consigo. Gosta de rap?
Gosto mas não a 100%. Disseram que eu era o primeiro rapper português, talvez pela cadência das palavras. Mas não sou, na essência, um rapper porque gosto muito da harmonia da melodia.
E como se relaciona com o fado? Antigamente estava longe, agora aproximou-se...
Estava longe, até porque sou do Porto. Em Lisboa, passamos nos bairros mais populares e ouvimos gente a cantar fado em casa, está no sangue dos lisboetas. Já compus fados para a Mísia, para o Camané, para a Cristina Branco. Gosto de experimentar géneros. As minhas canções têm uma paleta de estilos ampla - e depois têm a minha marca. Interessou-me experimentar o fado como autor. Não sei cantar fado. Sou capaz de dar umas voltinhas de fado mas não vem de dentro, não é orgânico.
Está a escrever um romance. Como chegou aí?
Fui convidado para fazer um conto para a biblioteca digital do DN e escrevi Notas Soltas da Corda e do Carrasco, pesado, porque a primeira pessoa é um carrasco. Alguém que executa uma tarefa que é executar pessoas. Apeteceu--me continuar e escrevi nove contos, publicados na Vidadupla. Foram muito trabalhados, no sentido de a linguagem não ser banal, há exigência na forma narrativa. Fi-los todos na primeira pessoa e as personagens não têm nomes. Foi uma semipiada - eu tive tantos nomes nas minhas canções... Etelvinas, Barnabés e Casimiros. Descarnei as personagens de nome, de locais reconhecíveis. Acabados esses contos, quis alguma coisa de mais fôlego.
E quando será publicado?
Queria que estivesse pronto para sair daqui a um ano. Mas há muito por fazer, mesmo depois de acabar de escrever. Já no Vidadupla trabalhei com a editora Lúcia Melo, houve uma depuração importante. E é bom! Porque muitas vezes ficamos enleados no nosso suposto brilhantismo. Só lho mostro quando a escrita estiver firme, porque se agora começasse a mostrar pedaços começavam a criticar e eu esmorecia. Agora tenho de confiar em mim.
Continua a pôr-se à prova?
Na escrita estou a arriscar completamente, porque isto de entrar noutro quintal, no quintal da literatura, gera equívocos. As canções são mais luminosas, isto é mais sombrio. Aspiro a uma forma de compreensão que pareça simples. Eu arrisco naturalmente, isso dá--me pica, e levo com o lastro de "ele é tão bom a fazer canções e agora vai fazer isto..."
Escreve à noite?
Trabalho devagar, preciso de tempo. Sou muito disperso e só trabalho bem à noite ou ao fim da tarde. De manhã, a minha energia está para outras coisas, ir ao ginásio, ir à rua, fazer umas compras. Praticamente só escrevo no computador, onde corriges e fica logo corrigido. Gosto dessa distância permanente e dessa proximidade. E a noite ajuda-me a concentrar, é uma espécie de redoma... "as dádivas da noite são eternas", como diz o Lisboa Que Amanhece. Parece que o tempo está em suspensão.
Tem escrito canções?
Não estou sempre a escrever canções. Quando escrevo, começo a escrever mais do que uma, a não ser que sejam encomendas. Vou fazer duas ou três canções para o filme que o Ivo Ferreira vai realizar em Macau. Muitas vezes não tenho necessidade de compor. Gosto muito da noção de encomenda. Fiz muitas canções para filmes, para peças de teatro, para séries. O Kilas é um exemplo bom, porque a Balada da Rita se autonomizou da origem. Há pessoas que nem sabem que foi feita para o filme. A encomenda abre-nos outras perspetivas, dá-nos ideias, há personagens que nos sugerem um mundo que é preciso desenvolver.
Fez 70 anos no verão. Dá ideia que não os desperdiçou.
Desperdicei no sentido em que poderia ter feito mais coisas. Mas gosto dos meus ritmos. Gosto de perder tempo à conversa, de fazer outras coisas que não só a obsessão da criação. Sou muito vivencial, sempre fui. Vivi em muitos países, experimentei muita coisa - drogas lícitas e ilícitas, vivi com gente muito diferente e tive vários amores e desamores e, às vezes, filhos deles. Aconteceram montes de coisas, umas provocadas por mim outras não - até estive preso duas vezes no Brasil.
A experiência de prisão fica para toda a vida? A sensação de confinamento, de não poder sair dali?
Fica, foi forte. Não posso dizer que que não foi uma boa experiência, trouxe-me muita coisa. Acabei por ser expulso, foi a maneira de não ser condenado - fui absolvido das duas vezes. O pior era não saber o que ia acontecer.
Essas camadas de sedimentos estão todas no universo literário?
Tudo. Lembro-me de muita coisa. e sobretudo de coisas que podem parecer pequenas mas que marcaram. Às vezes é uma frase ou algo que aprendi sobre, sei lá, a traição. Não necessariamente uma traição amorosa, a traição de uma amizade. Aconteceu-me duas ou três vezes alguém desiludir a minha generosidade e a minha amizade. Há quem se ria por alguém tirar uma cadeira a uma pessoa e ela estatelar-se. Isso para mim é horrível, é uma humilhação. A traição de uma amizade é uma humilhação.
Imagina-se a deixar de cantar?
Cantar é uma coisa precária. Se se tiver o mínimo de cuidado, a voz dura até tarde. Espero continuar mais uns bons anos, mas já não alcanço o Tony Bennett, que tem 89 anos e está incrível.
É mais de Lisboa ou mais do Porto?
Sou dos dois. Lisboa é a cidade onde eu vivi mais anos. Vim a seguir ao 25 de Abril, já lá vão 40 anos, no Porto vivi metade disso, até aos 20. Mas uma raiz é uma raiz.
Voltar ao Porto é voltar a casa?
Volto ao Porto sempre com muita alegria. E gosto de voltar com esse tipo de disponibilidade de não viver e de reconhecer, saber para que lado estou virado se me perder numa rua e ter essa familiaridade. Sendo um homem do mundo e cosmopolita, continuo a ter uma raiz muito portuense.
O que é isso?
É um certo tipo de acidez no humor, isso é muito portuense. Há um tipo de franqueza que é um bocadinho agreste mas que me é muito próxima. Adoro Lisboa. É uma cidade muito especial e já é tão minha. Tem os defeitos das grandes cidades mas tem uma personalidade própria. E gosto do lado multicultural e multiétnica. Nas capitais, mais de metade das pessoas não são de lá, vêm para. A grande urbe tem problemas mas tem uma convivência espantosa. Gosto muito do campo, mas sou citadino e gosto muito do mar. Eu tenho um lado assim um bocado saltimbanco.