Sem um regulador independente, há risco de novos casos como o Fifagate

Poiares Maduro e Emanuel Medeiros defendem que ainda há muito para fazer no combate à corrupção no desporto e convergem na ideia de que é preciso um regulador externo para intervir em alguns casos do futebol.
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A corrupção do desporto a nível global, e sobretudo no futebol, está hoje enraizada e assume novos contornos difíceis de controlar e escrutinar, muito por culpa da ausência de regulamentação e sobretudo de controlo de entidades independentes. Este tipo de crime é cada vez mais sofisticado e até organizado. Já não é só como há uns anos a nível de subornos e viciação de resultados. Atualmente fala-se de negócios pouco transparentes a nível de transações de jogadores e de capital das SAD, lavagem de dinheiro, investidores de origem duvidosa, da proliferação das apostas ilegais e do match fixing.

Miguel Poiares Maduro, professor universitário e antigo ministro no Governo de Passos Coelho, integrou durante oito meses (entre 2016 e 2017) o Comité de Governação da FIFA. Acabou por deixar o cargo por, como disse na altura, ter tentado "mudar processos instalados há décadas" no organismo.

"A FIFA funciona como um sistema privado da regulação do mercado, ou seja, as entidades públicas deixam as regras dos mercados relacionados com o mundo do futebol à regulação das próprias organizações internacionais da modalidade. São elas que decidem tudo. E o escrutínio e supervisão é extraordinariamente débil, a ordem jurídica a que estão sujeitos é a da Suíça, um país que funciona quase como um paraíso regulatório e atrativo para estas organizações porque escolhe um modelo de regulação que lhes dá enorme autonomia", disse ao DN. Sendo elas próprias a ditarem as regras, "faz com que as áreas económicas relacionadas com estes mecanismos sejam propensas ao crime financeiro e, devido aos escrutínios débeis, os riscos de corrupção são fortes"

Poiares Maduro recordou que "a União Europeia já identificou a área do futebol como um dos setores mais suscetíveis a riscos de lavagem de dinheiro". E adiantou que há uns anos houve uma tentativa de criação de uma cleaning house, que na prática seria uma organização independente que tinha como objetivo regular alguns negócios do futebol, mas que não avançou. "Ao não ir para a frente dá a ideia que há muita gente interessada em manter uma elevada opacidade no que diz respeito às transferências dos jogadores", atirou.

Muito crítico em relação à elevada esfera de ação da FIFA e da UEFA, que são as organizações que têm "o poder político do futebol" e são "responsáveis por distribuir o dinheiro pelas confederações e clubes", Poiares Maduro considera que está instalada "uma enorme lógica de cartel político" e que é cada vez mais difícil retirar quem está em cargos de poder.

"O João Havelange esteve na FIFA 37 anos, foi substituído pelo seu número dois, o Joseph Blatter, que esteve 17 anos e só saiu devido à intervenção do departamento de justiça norte-americano [no âmbito do famoso caso Fifagate]. Uma vez pedi a um investigador para ver quantas vezes tinham os presidentes das confederações perdido eleições. Nos últimos 50 anos só identificou uma ocasião que tivesse acontecido. Foi o Lennart Johansson quando perdeu as eleições da UEFA para o Michel Platini. E se calhar foi porque ele queria mudar as regras de organização interna da UEFA", observou.

Para Poaires Maduro, "a partir do momento em que as organizações do futebol não se mostram capazes de desenvolver mecanismos de escrutínio e transparência de controlo eficazes", esta regulação "deverá vir do exterior". "E acho que pode ser a nível supranacional, pela União Europeia, por exemplo. Se for um só estado a fazê-lo podem surgir aquelas ameaças do costume, como a exclusão das provas internacionais. A única entidade que conseguiu até hoje impor alguma regulamentação externa foi a UE, com o famoso caso Bosman. Por isso sempre defendi que a UE tem que assumir um papel de maior regulação dessas entidades supranacionais", considerou.

Um dos maiores casos de corrupção no desporto ficou conhecido como Fifagate. No dia 7 de maio de 2015, o FBI, a pedido da justiça dos EUA, realizou uma operação sem precedentes, com 14 mandatos de prisão num hotel em Zurique, na Suíça, onde estavam hospedados os maiores dirigentes da instituição que comanda o futebol mundial, reunidos num congresso anual.

Foram detidos nove dirigentes num total de 14 acusados, entre eles José Maria Marin, ex-presidente da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), e Nicolás Leoz, ex-presidente da Conmebol. Em causa estavam fortes suspeitas de esquemas de corrupção e lavagem de dinheiro da entidade nos últimos 20 anos, que ascendiam a cerca de 200 milhões de euros, e que incluíam o processo de escolha das sedes do Mundiais de 2018 e 2022 e direitos televisivos, entre outras suspeitas.

O processo e a investigação acabaria por chegar às mais altas esferas do futebol mundial. Em setembro de 2015, a justiça suíça abriu um processo-crime contra o então presidente demissionário da FIFA Joseph Blatter, que implicou também Michel Platini, presidente da UEFA. Em causa estava uma suposta gestão danosa e apropriação indevida de fundos.

O dirigente francês, que era candidato à sucessão de Blatter, foi na altura ouvido por, alegadamente, ter recebido do suíço "um pagamento ilegal" de dois milhões de francos suíços (cerca de 1,8 milhões de euros). Os respetivos processos ainda decorrem na justiça civil, mas ambos foram proibidos de exercer cargos ligados ao futebol por vários anos pelo Comité de Ética da FIFA.

Poiares Maduro considera que mesmo depois desta bomba atómica, muito pouco foi feito para prevenir futuros escândalos de corrupção ao mais alto nível. "Infelizmente acho que é possível poder existir um novo Fifagate. Não há mecanismos de transparência e fiscalização suficientemente eficazes que me transmitam confiança. São inúmeros os casos de suspeições e, portanto, infelizmente, penso que os riscos de existir um caso semelhantes a um Fifagate são fortes", referiu, discordando que o match fixing seja a maior preocupação atual no desporto por tratar-se de um problema que "está mais generalizado nas chamadas ligas inferiores".

"Nas ligas mais importantes existem outro tipo de problemas, como os riscos a nível de lavagem de dinheiro, de evasão fiscal, conflitos de interesses relacionados com propriedades de clubes e as transferências de jogadores. Em muitos casos relacionados com transferências existe muita opacidade, muita dificuldade em explicar o que se passa em certo tipo de transações", concluiu.

Emanuel Medeiros é o Global CEO da SIGA (Sport Integrity Global Alliance), uma organização que luta e promove diversas ações para promover a integridade no desporto, que aposta nas melhores práticas, adotando os standards universais da SIGA em matérias de boa governação, integridade financeira, apostas desportivas e proteção de menores, "com o objetivo de não só combater a corrupção no desporto, como todos os comportamentos desviantes".

"Queremos operar uma revolução. Mais do que medidas cosméticas e intenções nobres, o que o desporto precisa é de liderança global e coragem para imprimir reformas há muito necessárias. Mas que por uma ou por outra razão nunca saíram da gaveta. A repetição cada vez mais frequente de incidentes que mancham a reputação do desporto e ferem de morte a reputação dos seus agentes, associada ao efeito danoso, devem ser razões suficientes para instigar uma visão reformista", diz ao DN.

Tal como Poiares Maduro, também Emanuel Medeiros é a favor da criação de um organismo independente, de uma cleaning house que torne mais transparentes as transações financeiras. "O desporto, e o futebol em particular, sendo a modalidade de maior expressão financeira, evoluiu muito. Em alguns casos até se tornou vítima do seu próprio sucesso. À medida que gerava mais receitas atraía um caudal de oportunistas e agentes sem escrúpulos, e até organizações criminosas, que procuravam servir-se das vulnerabilidades da regulação para servir os seus intentos ilícitos e criminosos. E, portanto, só é possível assegurar a integridade e a transparência dos fluxos financeiros gerados pelo desporto se houver uma entidade dotada dos meios legais e operacionais para permitir filtrar todo este processo, desde a fonte até ao destino. Mas não é só escrutinar a origem e o destino dos capitais, é também a idoneidade e as credenciais quer dos investidores quer dos intermediários", explicou.

O responsável da SIGA recordou que há uns anos, quando era CEO das Ligas europeais e mundiais, um membro de um governo pediu-lhe informações e documentação no sentido de poder vir a ser criada a tal cleaning house. "Os governos têm-se sucedido e nada tem avançado. Por isso é preciso apontar o dedo a quem tem essas responsabilidades e não as tem exercido", atirou.

Emanuel Medeiros admite que não consegue atribuir uma classificação aos casos mais preocupantes da corrupção no desporto a nível global. Mas enumera algumas situações.

"As fragilidades do sistema radicam em áreas concretas, como as transferências de jogadores e respetivas transações financeiras, comissões pagas a intermediários, proliferação de veículos domiciliados em offshores à margem de qualquer escrutínio e controle, a infiltração criminosa que teve um boom enorme durante esta pandemia, porque o crime organizado aproveitou as fragilidades e a falta de liquidez do mercado. Há também a questão do investimento e aquisição de capital em sociedades desportivas por haver uma ausência de um quadro regulador à escala mundial. A falta de escrutínio sobre a entidade dos investidores, a origem dos capitais, o controlo de todos os fluxos. E naturalmente as questões das apostas ilegais num quadro de completa desregulação", indicou.

"São precisas reformas concretas. Mas não será resolvido só com legislação, é preciso formação contínua e capacitação, até ao nível das autoridades judiciais, porque a criminalidade que gravita à volta do desporto é cada vez mais sofisticada, mais complexa, com uma crescente componente transnacional. É preciso cooperação reforçada entre todos. Na prática é esta frente unida que a SIGA representa, ao trazer a terreiro todos os intervenientes, os movimentos desportivos, os governos, as organizações internacionais, a sociedade civil e os chamados global business. É preciso que também os patrocinadores, os operadores televisivos e os parceiros comerciais se cheguem à fente e tenham esta cultura de integridade. Porque é que o futebol e outros desportos hão-de conviver para sempre com o estigma da suspeita de que há qualquer por baixo da mesa? É preciso dar um murro na mesa e livrarem-se desse estigma", concluiu.

TOTONERO
Em Itália, no início da década de 1980, rebentou o famoso Totonero, que deu conta de manipulação de resultados por parte dos jogadores nas Séries A e B da liga Italiana (com vista ao jogo de apostas clandestinas, ligadas ao crime organizado), envolvendo clubes como AC Milan, Lazio, Nápoles, entre outros. Ficou célebre na altura o castigo de três anos (depois reduzido a dois) ao italiano Paolo Rossi, que na altura representava o Peruggia. Curiosamente após o regresso foi determinanente no título de campeã do Mundo da Itália.

CASO TAPIE
A França também foi abalada por um famoso escândalo desportivo na década de 1990, envolvendo o então poderoso Marselha presidido por Bernard Tapie. Em causa estavam subornos a jogadores adversários para facilitarem a missão dos marselheses em campo. Tapie foi detido, o Marselha perdeu o título de campeão da época 1992/93 (e o direito de jogar na Liga dos Campeões 1993-94, a Supertaça Europeia de 1993 e a Taça Intercontinental de 1993 ) e o clube foi atirado para a II divisão durante duas temporadas, tendo mesmo decretado falência.

CALCIOPOLI
Em 2006, novo escândalo na Série A italiana com o famoso Calciopoli, relacionado com manipulação de resultados na temporada 2004-05, envolvendo alguns dos maiores clubes italianos, casos da Juventus, Fiorentina, Lazio e AC Milan, e que terminou com a descida da Juventus à II divisão. Lazio e Fiorentina disputaram a Série A, mas com 11 e 19 pontos negativos, respetivamente. O Milan começou o campeonato com menos oito pontos.

FIFAGATE
É considerado um dos maiores casos de sempre de corrupção no futebol que chegou às altas esferas da FIFA e da UEFA, uma investigação iniciada pelo departamento de justiça dos EUA. Em maio de 2015 levou, numa fase inicial, à detenção de vários membros da FIFA e também à queda de Joseph Blatter e Michel Platini. Em causa estavam fortes suspeitas de esquemas de corrupção e lavagem de dinheiro da FIFA, que incluíam o processo de escolha das sedes do Mundiais de 2018 e 2022 e direitos televisivos.

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