Sem cenários nem adereços, todos são Hamlet
Na tenda do Chapitô, não há cenário nem adereços. Apenas quatro atores, vestidos de fato e gravata, que transportam o público para o edifício de vários andares da multinacional onde se encontram. Há um vidro que não está lá, mas que se imagina, e há sons, muitos barulhos e ruídos que os atores vão destilando, como uma espécie de onomatopeia transformada em personagem de palco nesta "inadaptação" de José Carlos Garcia a partir de Hamlet, de William Shakespeare.
Privilegia-se um espaço em constante transformação, no qual o uso de objetos desafia a imaginação dos espectadores. "Tudo é possível de imaginar e é mesmo essa a ideia", dirá o encenador José Carlos Garcia depois do ensaio de imprensa.
Mas afinal onde estamos? Não estamos na Dinamarca e muito menos na época de Shakespeare (1564-1616), mas parece que há coisas que nunca mudam. E agora como então, entre a loucura real e a loucura fingida, a peça traz a lume temas como traição, abuso de poder, corrupção, imoralidade, falta de afetos e de escrúpulos, solidão e amor.
A história de Hamlet perpetua-se e inadaptação talvez seja o termo mais adequado para este trabalho, despido de preconceitos e repleto de sátira e humor, seguindo as linhas principais do texto original, mas propondo uma montagem mais cinematográfica ao colocar a história nos nossos dias. Os tempos modernos servem de base à analogia entre o Reino e uma empresa multinacional, em que os valores se subvertem. Há a busca incessante pelo lucro e um total desinteresse pelas relações humanas. "É uma sociedade autista e muito desumanizada, explica o encenador.
Jorge Cruz, Susana Nunes, Patrícia Úbeda e Tiago Viegas compõem o elenco desta equipa que trabalha em conjunto o texto e a sua interpretação, explorando um estilo de comédia visual e física que apela não só à originalidade mas também ao facto de o espetáculo ser considerado por todos como um "organismo vivo que está sempre em andamento". E o público tem também o seu papel. "Acontece muitas vezes as ideias virem não só de nós mas também do público. Acabamos por replicar tudo isso em palco, não é algo estático, a peça pode mudar de dia para dia", assumem os atores.
Transformar a tragédia em comédia, valorizando-a pelo seu poder de questionar todos os aspetos da realidade física e social, tem sido uma das premissas da Companhia do Chapitô, desde 1996, já com 35 criações e vários prémios.