"Seja mulher ou homem, o valor de alguém na arte ninguém o tira, nem mesmo a guerra"

Depois da sua primeira presença no Festival Músicas do Mundo, que decorre em Sines, a cantora portuguesa Dulce Pontes deu uma entrevista ao DN, Rádio Global Expedition e à Inatel, onde falou dos tempos de pandemia e do seu mais recente disco, Perfil
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Finalmente em Sines. O Festival Músicas do Mundo era um palco que ambicionava?
Sim, porque não? Foi maravilhoso, o público é incrível. Senti-me em casa, mesmo. Uma família mesmo, como disse no concerto. Já vinha a sentir essa vibração no caminho para cá. Tinha ficado no palco mais tempo. Acho que se notou. Foi muito bonito e estou a adorar. Foi um privilégio enorme. Senti uma grande empatia. O público era expressivo e muito querido. Fez-me vibrar a mim também.

Perfil foi o último álbum que lançou. Porquê lançar um álbum sobre as suas raízes neste momento?
Quando lancei o álbum, foi a guerra também. De tal forma que quando o apresentei nem tinha vontade de falar sobre isso. Foi um pouco triste depois de tanto empenho e tanto esforço. Por outro lado, é tudo relativo, tentei adaptar-me a estas circunstâncias da forma mais saudável. Pensei: não é por isto que o trabalho que tive deixou de ter algum valor. É um disco mais ligado à minha infância e ao fado, porque eu cantava fado e música popular portuguesa. Foi algo que tive sempre presente. Estou superfeliz, porque sinto que existe uma percentagem de pessoas que conhece as canções como a Amapola e a Miss Caravela. Fico superfeliz por ter conseguido chegar e também graças à Universal, porque sozinha não se consegue. Eu andei sozinha 13 anos e sempre a trabalhar. Em Portugal menos, e nota-se que tenho saudades. Mas não chorei, era vento e alergia. Depois olhei para o público e vi uma pessoa que estava a chorar e achei melhor explicar no concerto que não estava a chorar.

Este ano, o FMM trouxe-nos um cartaz com muitas mulheres. O que sente que ainda falta fazer para valorizar ainda mais as mulheres no mundo da arte?
Seja mulher ou homem, o valor de alguém na arte ou noutra área qualquer ninguém o tira, nem mesmo a guerra. É com o tempo. Existe aquele velho ditado que diz o tempo tudo revela e tudo demonstra. O tempo põe tudo no sítio. Às vezes não põe. Existem várias lutas, várias frentes, digamos assim. Sabemos que ainda existe um caminho a percorrer, mas a pouco e pouco acho que tudo vai chegar à normalidade. As pessoas vão poder aceitar-se umas às outras com tempo. Faz parte da evolução. Todas estas lutas vão levar um caminho natural. Assim como há uns tempos, lembro-me de um amigo sofrer horrores para me contar que gostava de homens. Nós fomos para o meio da serra de Sintra para ele me contar. Eu até disse: então, é só isso? Por amor a Deus! Cada pessoa tem essa liberdade, seja em que aspeto for. Sim, às vezes ficamos muito divididos. Temos de ser mais unidos e se calhar discutir menos. Já tenho 53 anos, mas esta é a minha forma de ver as coisas.

Antes de entrar em palco, existe algum ritual que a Dulce faça para se preparar?
Normalmente faço sempre dois exercícios de aquecimento vocal. Não faço mais porque o esforço vai acontecer em palco. Fazer muito aquecimento vocal não é bom. Já estou a falar como uma professora vocal. Um dia vou ser professora, mas não agora, ainda falta algum tempo. Às vezes as pessoas pensam que o facto de fazer muito exercício é o que se deve fazer, mas não. Quando se canta muito e muito seguido, é preciso ter esses cuidados. Faço a respiração de ioga e também faço os movimentos para me focar e concentrar. Eu tenho tensão baixa, mas a tensão acaba sempre por disparar. E faço isso para me controlar. No momento de entrar em palco, a sensação que sempre tenho é que vou voar, mas posso despenhar-me a mil à hora. Quanto mais tempo de carreira temos e depois de tanto tempo, pode acontecer algo desse tipo.

Lançou o álbum em fevereiro e agora passou por Sines. Qual é a próxima etapa?
Para além de mais concertos, tenho um projeto paralelo com a orquestra sinfónica, que ainda está muito no princípio. Depois tenho outro, que é um sonho já de há imenso tempo. Quando abriram as coisas, começaram a abrir aos poucos, fui a Madrid, ao palácio real, e foi estranhíssimo ver mil pessoas com aquele distanciamento obrigatório. Parecia um filme de ficção. Lembro-me de ver um casal a dar a mão distanciado. Foi uma imagem tão forte que perdi a vontade de cantar. O que me salvou nessa altura da pandemia foi mesmo a minha horta, ou seja, mexer na terra e plantar. Depois, pouco a pouco, comecei a voltar. Comecei a pensar que tinha de cantar e cantar tudo o que não cantei até agora. Por isso comecei a fazer essa junção toda, mas não comecei a gravar esse projeto.

Como foram estes dois anos de pandemia como artista?
O início, para mim, foi um choque brutal, porque de repente tudo aquilo que tinha ensinado aos meus filhos ficou diferente. Tive de pensar nisto de uma forma lúcida e procurar informação. Tem de se ter muito cuidado com tudo aquilo que se vê e se ouve. Depois tive a sorte de começar a ter concertos, todos, inicialmente, fora de Portugal. Quando houve a recaída em novembro dos casos, eu estava na Holanda e dei um concerto em Amesterdão. Estava tudo sem máscara e senti-me tão bem. Foi tão bom ver pessoas genuínas e humanas.

mariana.goncalves@dn.pt

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