SEF tem em curso 30 investigações a envolver associações desportivas
Vêm à procura do sonho de jogar futebol no país de Ronaldo e acabam muitas vezes reféns de quem lhes vendeu o sonho, explorados e traficados. O caso da Academia BSports, que na semana passada abalou o futebol português, é apenas um entre muitos. "O Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) tem em curso cerca de 30 investigações envolvendo associações desportivas ou clubes de futebol, nomeadamente ligados à exploração dos jogadores que se deslocam para Portugal com a promessa de que serão vistos por olheiros/empresários para concretizarem o sonho de jogar na Europa", disse ao DN o órgão de polícia criminal integrado no Ministério da Administração Interna (MAI).
Desde janeiro, foram distribuídos para investigação 249 inquéritos, segundo o SEF. E desses, nove foram por tráfico de pessoas.
Ainda segundo os dados enviados ao DN, nos últimos cinco anos (2018-2022) houve 63 inquéritos relacionados com instituições desportivas e cidadãos estrangeiros que exercem atividade desportiva, tendo sido remetidos ao Ministério Público 30 com proposta de acusação. Nesse período, foram ainda investigados, especificamente, 61 clubes de futebol e quatro empresários, tendo sido constituídos 103 arguidos, sendo que a maioria são dirigentes de clube ou associações (76), mas também há atletas (12) e até um treinador envolvido, para além de 14 agentes/empresários de jogadores.
As ações têm visado, essencialmente, a prevenção, deteção e combate a fenómenos associados ao auxílio à imigração ilegal, incidindo sobretudo no futebol. Nos últimos cinco anos "foram sinalizados cerca de 30 atletas como (presumíveis) vítimas de tráfico de seres humanos e/ou exploração laboral", sendo a maioria de nacionalidade brasileira (17). Foram ainda registadas cerca de 260 vítimas do crime de auxílio à imigração ilegal.
Segundo o SEF a prioridade "é o bem estar da vítima de tráfico", por isso o serviço trabalha em estreita colaboração com as Equipas Multidisciplinares Especializadas Regionais do Norte, Centro, Lisboa, Alentejo, Algarve, Açores e Madeira, que se encontram sob coordenação da Associação para o Planeamento da Família, uma organização não governamental que intervém no processo de sinalização, identificação e assistência a vítimas desde 2008.
Estas equipas funcionam como SOS e são direcionadas para a assistência a nível regional, atuando numa ótica de proximidade e em articulação com os intervenientes locais. "Ao serem sinalizados como possíveis vítimas de tráfico de seres humanos, são encaminhados para instituições especializadas, onde são asseguradas as respostas atempadas às necessidades de apoio médico, estabilidade emocional e psicológica", segundo o SEF.
No caso da BSports foram sinalizadas 47 vítimas de tráfico oriundas de países de África, Ásia e América do Sul, 36 delas menores de idade, que ficaram sob proteção do Estado, nas figuras da Comissão de Proteção de Crianças e Jovens e do Tribunal de Família e Menores de Vila Nova de Famalicão. Muitos deles já regressaram ao país, depois de serem ouvidos por um juiz de instrução para memória futura, tendo em vista um eventual julgamento, soube o DN.
O caso abalou o futebol português na semana passada por envolver o recém eleito presidente da Mesa da Assembleia Geral da Liga, Mário Costa, que entretanto renunciou ao cargo após ter sido constituído arguido por suspeitas de tráfico de pessoas (tal como o pai dele, segundo a TVI, e mais cinco sociedades). O diretor da academia (e primo de Mário Costa) estava no estrangeiro quando o MP levou a cabo a Operação "El Dourado", mas será ouvido assim que regressar a Portugal.
A investigação estava em curso desde 2020, altura em que o SEF enviou o processo para o Ministério Público, que depois delegou no SEF a condução da investigação. A operação foi para o terreno no dia 12 de junho. A eleição de Mário Costa (dia 1) precipitou a ação do SEF, segundo soube o DN, para impedir que o eventual tráfico de seres humanos com epicentro na BSports fosse perpetuado. O caso está em segredo de justiça.
Os jogadores garantiram que foram obrigados a entregar os passaportes e proibidos de sair das instalações sem autorização, além de se sentirem vigiados 24 horas por dia. Só os maiores de idade podiam sair e se pedissem autorização com antecedência. Ainda segundo os testemunhos, os atletas pagavam entre 600 a 2000 euros por mês durante 11 meses para ter formação desportiva e académica.
Para evitar a escalada de casos como a da BSports, o Governo criou um grupo de trabalho para apresentar novas medidas. Obrigar os clubes a oferecerem contratos de trabalho aos atletas na fase de inscrição, penalizar desportivamente os incumpridores (com a despromoção competitiva, por exemplo) ou obrigar as academias e escolas de desporto a garantir seguros desportivos aos atletas são algumas das propostas governamentais, segundo disse o Secretário de Estado do Desporto, João Paulo Correia, numa entrevista à RR/Público.
Já a Federação Portuguesa de Futebol (FPF) propôs que os estrangeiros que cheguem ao país para praticar desporto estejam sujeitos a um parecer prévio e tenham um responsável identificado. E para o SEF é importante fazer uma alteração à lei de estrangeiros, para que seja mais incisiva, de forma a tornar mais fácil o controlo do fenómeno.
Mas todos parecem concordar que nem tudo passa por alterações legislativas. Jogar na prevenção, aumentar o controlo e fiscalização e impedir que os casos evoluam para inquéritos criminais são igualmente importantes. O plano reformatório será apresentadas na reunião do Conselho Nacional de Desporto que irá realizar-se a 10 de julho. Até lá o grupo de trabalho ainda irá reunir mais duas vezes - a próxima já na segunda-feira - para discutir as propostas e as alterações à lei vigente.
Para já o SEF vai continuar com as ações de sensibilização junto dos clubes e associações desportivas, bem como da Federação Portuguesa de Futebol - que em 2017 criou uma plataforma (integridade.fpf.pt). Outra colaboração para manter é com o projeto MH4-Saúde em Português, que em outubro passado lançou a campanha contra o tráfico humano no futebol "Não deixes que o teu sonho se transforme em pesadelo".
Canas de Senhorim. Em 2019, o MP acusou o então presidente do Grupo Desportivo e Recreativo Canas de Senhorim (Nelas) de 14 crimes de auxílio à imigração ilegal e tráfico de pessoas, outros dois na forma tentada e um crime de falsificação de documento. Os 14 jogadores/vítimas chegaram a Portugal em 2016 e 2017 com o visto de turista e a promessa de um contrato de 550 euros mensais para jogar futebol.
Palmeirense FC. Este mês o Tribunal de Braga deu como provado que oito jovens futebolistas brasileiros viveram "sem quaisquer condições de higiene e segurança" nas instalações do Palmeiras Futebol Clube (Braga), mas absolveu o único arguido no processo - acusado de oito crimes de auxílio à imigração ilegal - por falta de provas. Os futebolistas chegaram ao clube entre agosto e setembro de 2018 mas acabaram por abandonar o país.
Os Nazarenos. O caso do Grupo Desportivo Os Nazarenos, de Leiria, que envolveu 17 jogadores, resultou em acusação. O Ministério Público acusou o clube, o presidente e dois empresários de nacionalidade brasileira por 15 crimes de tráfico de seres humanos, dois deles agravados, e 17 crime de auxílio à imigração ilegal. Ainda não houve julgamento.
Serpense. No ano passado, o DN denunciou o caso do Clube de Futebol União Serpense (Serpa), onde foram identificados seis casos de tráfico, após uma queixa anónima apresentada na GNR de Beja. O principal visado, Djalma Galhardi, era diretor desportivo e negou todas as acusações, desconhecendo-se se foi formalmente acusado, uma vez que já tinha deixado o Serpense e se encontrava no Brasil na altura em que o SEF efetuou diligências.
Guarda Desportiva FC. Em fevereiro de 2022, o SEF constituiu arguidos o Guarda Desportiva FC, bem como o presidente e quatro dirigentes, com nacionalidades estrangeiras, por indícios dos crimes de auxílio à imigração ilegal e falsificação de documentos. Foram ainda identificados 34 cidadãos de 31 de nacionalidade estrangeira.
isaura.almeida@dn.pt