"Se vê significado político no nosso trabalho é porque você é um perverso"

O coletivo cubano foi convidado para inaugurar as Carpintarias de São Lázaro, em Lisboa. Inaugura hoje
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A fachada pintada de cinzento, inspiração arte déco, aspeto industrial, dá as pistas. As Carpintarias de São Lázaro hão de ser aqui. Da porta para dentro, há obras a decorrer e, na nave central, um andaime amarelo. Foi montado no meio de uma destruição também em montagem. Mesas partidas, destroços de madeira, uma cadeira amarela vibrante, suspensos por centenas de fios de pesca, simulando uma gravidade zero, e o que pode ser o que sobra de uma casa de banho. "É um showroom de Ikea que sofreu o impacto de algo. Uma coisa natural? Uma bomba? Um projétil? Uma pedra? Não se sabe, não o tenho claro". Quem o diz é Marco Castillo, metade do coletivo cubano Los Carpinteros, autores desta instalação que abre ao público hoje nas Carpintarias de São Lázaro, um novo espaço cultural junto ao Martim Moniz.

É a primeira vez que Los Carpinteros expõem em Lisboa, se descontarmos um vídeo dos primórdios da carreira dos artistas na Culturgest, juntos há 27 anos, e as intenções. António Pinto Ribeiro, então coordenador geral da Fundação Calouste Gulbenkian quis mostrá-los em exposição. "Viemos conhecer o espaço no mesmo dia em que ele foi demitido. É ver as datas", conta Marco Castillo. Foi em abril de 2015. Um ano depois começavam as conversações com Verónica de Mello, a curadora da exposição, e Alda Galsterer, da direção das Carpintarias de São Lázaro, a associação cultural que venceu o concurso público da câmara municipal de Lisboa para ocupar esta antiga carpintaria.

A intalação, Show Room, foi vista pela primeira vez em 2008 na semana de arte contemporânea de La Havana, Cuba. Usavam blocos de cimento. "Conheceu outra versão, em Londres, numa exposição chamada Psychic Buildings [Edifícios Psicóticos]. "É tudo feito de contraplacado e solta aquela poeira, não há nada que valha a pena, a não ser os livros".

Ao princípio, conta, a curadora propôs que a instalação se fizesse com móveis produzidos na velha carpintaria. Rejeitaram. "Achámos que ia carregar demasiado o conteúdo que se queria frio".

"Este é o standard, o standard da casa e o Ikea faz-se em lugares estáveis. Nunca os vamos imaginar em lugares afetados como Cuba, o Médio Oriente, onde haja assaltos, terrorismo, instabilidade política", justifica o autor da peça. Habitualmente, a obra faz-se sempre com materiais que encontram nos lugares onde vai ser montada.

Em Lisboa, "neste espaço que não está terminado, tão cinzento e descolorido", descreve Marco Castillo, foi preciso acrescentar mesas e cadeiras amarelas, "que desenhem o drama da explosão". "É um contraste precioso com o cimento do lugar, que era de uma neutralidade impressionante".

A peça foi a primeira, e única, escolha da curadora. "Verónica queria esta", diz o artista. "Achamos que faz um discurso bonito com o lugar", concorda.

É uma opção literal, levar os carpinteiros à carpintaria e é assim que a conversa começa, metros acima, enquanto Marco Castillo toma o pequeno-almoço na pastelaria Copélia (um detalhe que se virá a revelar importante adiante na conversa).

"Sempre quisemos enfocar-nos como carpinteiros, como gente de grémio", começa a explicar. "Diz-se grémio, em português?". Uma guilda, no velho sentido (associação que agregava pessoas com interesses comuns para oferecerem assistência e segurança aos seus membros). "Não somos artistas intelectuais, conceptuais e é curioso que nos enviem para a carpintaria, é como uma sentença", afirma.

Los Carpinteros eram inicialmente três: Marco Castillo, Dagoberto - Dago - Rodríguez, que estará hoje na inauguração e Alexandre Arrechea, que abandonou o coletivo em 2003. A biografia oficial diz que nasceram em 1992 em La Havana, Cuba, nos tempos em que eram estudantes de Belas Artes do ISA, Instituto Superior de Artes, no edifício modernista do arquiteto cubano Ricardo Porro e dos italianos Vittorio Garatti e Roberto Gottardi, mandado construir entre 1961 e 1965 por Fidel Castro e Che Guevara onde antes havia o campo de golfe Havana Country Club. "Tornou-se a escola mais bonita do mundo", diz o artista.

Marco Castillo volta a esses tempos. "Havia um grande confronto entre artistas e instituições, era muito provocador. Ao ponto de se fazer uma arte muito óbvia". Por exemplo? "Desenhar uma cara de Che Guevara no chão só para as pessoas pisarem em cima", conta. Eles próprios tocaram esses temas. Autorretrataram-se tentando jogar golfe numa das casas do country club que ficaram vazias no quadro Havana Country Club (1994). Delas viam sair pessoas com madeiras e mármores. "Seguimos o rasto". "E começámos a tirar madeiras, mármores, bronzes... Por isso as nossas primeiras obras tinham esse sabor velho, antropológico. Éramos jovens cubanos pobres, que estudávamos uma classe, a dos ricos, que já não existia."

Marco Castillo, 45 anos (Dago tem 47) regressa aos tempos em que se juntaram: "Essa amizade que cultivámos foi uma maneira de sobrevivência e salvou-nos". "Caiu o Muro [de Berlim], entrámos numa crise quando fomos para a universidade, passámos uma fome..." Faz, então, um paralelo entre a pastelaria Copélia da Rua de São Lázaro, onde toma o pequeno-almoço, e a geladaria Coppelia, outra construção modernista, na capital cubana. "Fiquei horas na fila, matei muita fome com litros de gelado. Arroz branco, gelado branco, sopa de arroz". Explica: "Havia uma problema de abastecimento de alimentos do campo para as cidades, o Estado concentrava-se numa coisa, podia ser leite, podia ser toranja, houve a época da toranja".

Pode retirar-se uma leitura política das vossas obras? "Se vê um significado político no nosso trabalho é porque você é um perverso!", diz Marco Castillo. Ri-se. "Digo por piada e a sério", responde. Fala-se das visões críticas, nem sempre tão críticas sobre os tempos de Fidel Castro, retratados por exemplo pela jornalista Yoani Sanchez. "São intelectuais e os intelectuais são de esquerda. A quem lhe vai parecer mal a educação para todos? Estamos contra o método", acrescenta. "Ao contrário do que se passa na restante América Latina, não há pessoas de 40 anos que não saibam ler. Por isso, não há violência. As pessoas mais cultas mais dificilmente se lançam na violência. A ignorância faz-te ser cruel".

[destaque:Los Carpinteros adquiriram a casa que um dia pertenceu ao médico de Fidel Castro para criar um centro cultural em Havana]

Conta que a ilha experiencia uma abertura, da qual estão a tirar partido. "Há um momento de iniciativa privada sem censura", descreve. Planeiam criar um centro cultural. "Comprámos um edifício, precioso, de 1959, para guardar o nosso acervo. Foi a casa de um médico que esteve com [Fidel] Castro na serra [Maestra], muito inteligente e culto [René Vallejo]. Comprámos a casa e a biblioteca, temos a responsabilidade de cuidar bem da biblioteca [dele] e da nossa".

Entretanto, Marco Castillo voltou a mudar-se para La Havana (Los Carpinteros estão entre Cuba e Madrid). Aconteceu em novembro precisamente no dia em Fidel Castro morreu (25 de novembro). No dia seguinte, os artistas apresentaram uma performance que envolvia cerca de 100 pessoas na Art Basel Miami: "Um Carnaval ao contrário, em que dançam ao contrário, a música foi composta ao contrário, as pessoas vestem-se de branco e negro". Conta as reações: "Os media cubanos na Florida escreveram "Los Carpinteros festejam a morte de Fidel em Miami". Eu não festejo a morte de ninguém".

Informação útil:
Los Carpinteros

Carpintarias de São Lázaro, Lisboa (Rua de São Lázaro, 72)
Até 1 de maio
Aberto de quarta a sábado, das 15.00 às 19.00.
Entrada livre

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