Quantos anos de investigação cabem neste livro? Muitos anos, parte do trabalho de campo foi realizado na Rússia nos anos 1990, tomei o primeiro contacto com a máfia russa ainda no tempo da ex-União Soviética. Este é um livro comparativo e que tenta descobrir o que as máfias de diferentes países têm em comum..Começou por estudar a máfia russa apesar de ser italiano. Sim, a União Soviética dissolveu-se e deu origem a uma Rússia capitalista e democrata, e eu quis estudar esta transformação social. Quando cheguei ao país, dei-me conta de que a máfia era muito importante e resolvi estudar a organização..A máfia georgiana é das mais importantes? A máfia georgiana é muito importante, a máfia japonesa é muito forte, mas a que cresce mais atualmente é a máfia calabresa, a 'Ndrangheta, que controla o mercado da droga. Tem um grande poder económico, muito potente, porque controla o tráfico da droga e tem muitas ramificações internacionais. Se pensarmos na sua presença no mundo, a calabresa é seguramente a mais importante..Já a Cosa Nostra vai no sentido inverso. A máfia siciliana está com grandes dificuldades, muitos chefes foram presos e estão com muita dificuldade em reorganizar-se. A Cosa Nostra está em declínio, mas as causas fundamentais que estão na sua origem não desapareceram. Acredito que voltará quando a repressão sobre a organização abrandar..Não é com a repressão, nos tribunais, que se pode combater as máfias? Obviamente que é muito importante que os mafiosos continuem a ser detidos, mas não chegaremos a lado nenhum se só se fizer isso. A máfia vai acabar porque é um fenómeno humano e, como dizia o juiz Giovanni Falconi [julgou os processos contra a Cosa Nostra, foi assassinado em 1992], como qualquer fenómeno humano, aparecem, desenvolvem-se e acabam por morrer. Mas só se combate a máfia com uma transformação social, porque é um produto das condições sociais, que é o que me interessa estudar. Não é uma questão psicológica, é uma questão social e política; se queremos combater a máfia, temos de transformar a sociedade e a política..Uma das coisas que diz é que são pessoas comuns: nem super-heróis nem psicopatas perigosos. São pessoas normais, parte da nossa sociedade, não podemos separá-los como se fossem aliens que vêm da Lua, e é muito importante que o compreendamos. Se queremos combater a máfia, temos de reformar a nossa sociedade..Quais são as ligações destas organizações à política? A máfia está associada a partidos de centro e centro-direita e, tradicionalmente, está contra os partidos socialistas e comunistas. Considera-os seus adversários porque competem pela proteção dos trabalhadores, também a máfia protege os trabalhadores mas em seu proveito. Particularmente, os sindicatos são considerados inimigos da máfia. Por outro lado, durante a Guerra Fria, os governos na Itália e no Japão, sobretudo na Itália, usavam a máfia para reprimir o movimento socialista e comunista. Havia como que uma espécie de aliança natural e, em geral, as máfias estão confinadas a um território, são muito nacionalistas, não lhes interessa tanto as ligações internacionais..Já o amor é considerado uma fraqueza. Sim, representa um perigo para a organização. Em primeiro lugar, as mulheres estão excluídas, o que, para mim, é um mistério. Não se percebe bem as razões dessa exclusão até porque estas organizações têm-se adaptado à evolução da sociedade, ao uso das novas tecnologias, mas as mulheres continuam a não poder participar nos rituais. A explicação mais credível é os chefes terem medo que a mulher dentro da organização, de forma mais formal, possa ser um fator de instabilidade. A máfia tem medo dos sentimentos, do amor, são sociedades masculinas, usam as mulheres, mas não querem que pertençam à organização..Tem havido grandes transformações no seio destas organizações? Não muito, as poucas mudanças têm que ver com a própria transformação da sociedade. O que a máfia faz desde sempre é controlar um pequeno território. Por exemplo, a máfia calabresa controla o porto de Gioia Tauro, na Calábria, onde chega a droga. Usam obviamente as tecnologias, nomeadamente para a lavagem de dinheiro, viajam muito mais, mas não mudaram na política, depois surgem novas máfias, novos atores, como na Rússia. E fazem coisas diferentes consoante os países. A 'Ndrangheta domina o território da Calábria, funciona como um Estado. Vai à Holanda, à Espanha, comprar a droga e não controla o território, no entanto, está presente..Encontrou ramificações em Portugal? Há um mafioso georgiano que esteve em Portugal, poderá existir um pouco da máfia georgiana em Portugal, envolvendo-se sobretudo nos assaltos a habitações, tanto quanto sei resume-se a isso. No livro falo de um homicídio em Itália cometido pela máfia georgiana e que o homicida fugiu para Portugal..O tráfico de estupefacientes é o maior negócio? É muito importante porque se ganha muito dinheiro, mas têm outros negócios, até no mercado legal, como a construção civil, que é um mercado muito poderoso economicamente. Os principais negócios são o imobiliário, a droga e a prostituição..E o tráfico de seres humanos? Não muito. Todo o tráfico de seres humanos para a Sicília vindo da Nigéria e da Líbia é feito por outras organizações e não pela máfia siciliana. Quando as mulheres chegam à Sicília e vão prostituir-se, já entra a máfia. O tráfico para Itália é feito por organizações líbias porque a máfia não tem capacidade para o fazer: não falam a língua, não têm os contactos certos na Líbia e na Nigéria. Na Itália, operam os grupos nigerianos, que são muito potentes e fazem competição com a máfia siciliana..São diferentes as tríades em Hong Kong e Macau? Em Hong Kong são como as outras máfias, controlam a prostituição, mas em Macau controlam o jogo, os casinos. Em Macau, os casinos são divididos em duas áreas: uma para os jogadores habituais que jogam nas máquinas e apostam pouco dinheiro; e uma zona privada para os VIP, que jogam grandes quantidades de dinheiro e as tríades controlam esta parte. Controlam as pessoas que jogam para lhes emprestarem dinheiro e que, depois, pagam se perderem, e perdem sempre. Não controlam o jogo por si mas controlam o pagamento, o débito. Controlar é o que fazem todas as máfias, só que aqui controlam o dinheiro do jogo. As máfias são muito similares na forma de atuar, depois têm pequenas diferenças..Por exemplo? A máfia japonesa tem muitas tatuagens, tal como a russa. Já a siciliana não faz tatuagens, e o mesmo acontece com a americana, mas fundamentalmente não são muito diferentes umas das outras..Podemos falar numa ética de funcionamento? Em certo sentido há uma ética, uma ética distorcida, criminosa, mas é uma ética, e isto é muito importante para compreender. Têm regras, não são exclusivamente um negócio, uma empresa, são uma instituição, é como um partido. Têm regras de comportamento, uma ideologia, rituais para entrar na organização, que são muito importantes..Rituais de iniciação? Sim, quando entram é como se houvesse uma transformação da própria identidade, são uma nova pessoa, como se nascessem nesse dia, num processo a que chamei de "nascimento". O nascimento são os rituais, a pessoa nasce quando se torna mafioso, que é quando se torna um homem de verdade, antes é como se não existisse..Também percebi no livro que não é fundamental nascer na família? Não, não! Em algumas máfias, como a calabresa, as relações de sangue são muito importantes, se nascer numa família mafiosa é muito provável que entre na máfia, mas nas outras não. Na Sicília, no Japão, na Rússia, na Ítalo-América, o que é importante é querer entrar. Usam o termo família porque a organização é tão importante como a família natural, é uma metáfora..Encontrou-se com muitos mafiosos. Teve medo de que as coisas pudessem correr mal? Sim e não, mas também não estava à espera que me contassem as operações secretas ou as suas vidas. Interessava-me o que pensam da vida, do mundo, da sua existência, da sua ideologia, o que lhes dizia antecipadamente..E não fazia juízos de valor. Nas entrevistas, seguramente que não, mas penso que a máfia é algo negativo, como também penso que é o produto da situação social. E acredito que é humanamente possível acabar com estas organizações, tem de haver vontade política..Nunca gravou as entrevistas, foi uma imposição dos entrevistados? Não, eu é que decidi, percebi que era melhor não levar gravador. Na minha primeira entrevista, na Rússia, levei o gravador e, no fim, quando o desliguei, a pessoa que entrevistava disse: "Agora podemos falar abertamente.".Impuseram condições? Quando entrevistei o mafioso russo, a condição era não publicar um primeiro livro na Rússia. Estes encontros, nos anos 1990, foram das coisas que mais me impressionaram, foram muito importantes para tentar perceber a sua mentalidade. Encontrámo-nos duas ou três vezes..Mas acabou por contar como funcionam essas organizações criminosas? Sim, mas muitas das coisas que conto no livro estão demonstradas em tribunal, em relatórios policiais, não foram eles que revelaram..Leram os seus livros? Não sei. Houve contacto com duas ou três pessoas da máfia russa e estavam bastante contentes..É sociólogo, criminologista, mas este livro não é propriamente uma investigação científica. Não, é uma reportagem global, feita em vários países onde a máfia está implementada. Há um escritor inglês, de quem gosto muito, que diz que "crime é observar o mundo da secretária"; não quero observar o mundo da minha secretária. Para mim, é importante sair do escritório e ir aos locais..Mafia Life foi publicado primeiro em Inglaterra, depois em Itália, em 2018, estando já em vários países europeus. É editado pela Desassossego e custa cerca de 18 euros. Federico Varese publicou anteriormente Mafie in Movimento e The Russian Mafia.