"Se medidas forem aliviadas, casos vão disparar", dizem médicos

Um grupo de 22 especialistas da área da saúde divulgou uma carta aberta para alertar ara a fase que vivemos na pandemia. "É uma fase diferente", diz a bastonário dos farmacêuticos. E, como tal, as medidas de confinamento geral em vigor "não são adequadas". Mas há quem esteja no terreno e que defenda que a "se não temos mais casos é porque há medidas restritivas". Portanto, a mensagem tem de ser o cumprimento as regras
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São contra as medidas extraordinárias de confinamento, consideram mesmo que estas "produzem efeitos mais gravosos para a sociedade e para o bem comum do que a própria doença" e alertam para o facto de, neste momento, o risco de morrer por outras doenças do que por covid-19 é muito superior. E foi com esta realidade que um grupo de 22 especialistas (*), entre os quais se destacam os médicos Agostinho Marques e Germano de Sousa e a bastonário das farmacêuticos, Ana Paula Martins, considerou ser este o momento de intervir e lançar um alerta às autoridades e ao Governo para que, "antes de tomarem decisões com enorme potencial deletério, ponderem as opiniões cientificamente fundamentadas dos cientistas e profissionais de saúde".

Para os signatários do documento "é possível delinear uma estratégia evitando a utilização das erradas medidas de confinamento geral", mas para quem está no terreno, como a diretor-geral da Saúde, "ainda é cedo para levantar restrições", afirmou ontem no Fórum da TSF, sublinhando que "antes de aliviar as medidas é preciso controlar o vírus". "Isto é um desafio enorme e temos de ter a humildade de perceber que as coisas não são perfeitas, que o que todos queremos é liberdade e espontaneidade nas nossas vidas, mas é um percurso que ainda está a ser feito".

O DN ouviu outros agentes da Saúde, como o bastonário da Ordem dos Médicos (OM), o presidente do Colégio da Saúde Pública da OM, o presidente da Associação Portuguesa dos Médicos de Saúde Pública e ainda o ex-presidente da Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar e todos concordam que, neste momento, a mensagem deve ser para as pessoas "cumprirem as regras de proteção individual".

O bastonário dos médicos admitiu ao DN não conhecer o documento na íntegra, mas do que viu, "parece-me um documento equilibrado, porque, de facto, nesta altura, a doença está com menor gravidade e percebo que tal tenha levado este grupo a solicitar outras medidas que não as de confinamento". No entanto, sustenta, "a ordem também considera que existem outras medidas em que se deve apostar e que nada têm a ver com as de confinamento, como a vacinação, o certificado digital ou os testes de antigénio e PCR", mas, na sua opinião, "um documento deste tipo, nesta altura, deveria incluir um forte apelo à comunidade no sentido de cumprir as regras de proteção, como o uso de máscara, o distanciamento e a higienização das mãos". Miguel Guimarães relembra mesmo que um dos problemas que temos agora e que tem levado ao aumento do número de casos de covid-19 é, precisamente, "as pessoas, sobretudo os mais jovens, não estarem a cumprir as regras de proteção".

O presidente do Colégio de Saúde Pública da Ordem dos Médicos, Luís Cadinha, considerou que o documento divulgado se "baseia em dados reais, nomeadamente no que respeita às hospitalizações e letalidade, mas faz uma interpretação de causa e efeito que não é correta".

No documento, que é também é assinado pelo médico de saúde pública igualmente assinado por Jorge Torgal, ex-subdiretor-geral da Saúde e pelo médico internista ex-presidente do Conselho de Administração do Hospital São João, é referido que, nos últimos 14 dias (até 8 de julho), a taxa de mortalidade da covid-19 foi de 0,03 por 100.000 habitantes, contra uma taxa de mortalidade por outras doenças e causas de morte de 2,7 por 100.000" e no que toca a hospitalizações "a média de doentes internados foi de 528,7, num total de cerca 21 mil camas do SNS"

Ora, para o presidente do colégio da OM os dados podem estar corretos, mas a questão é que "se não houvesse medidas de restritivas nesta altura os números seriam superiores". O médico exemplifica com o indicador (matriz de risco) lançado esta semana pela OM em parceria com o Instituto Superior Técnico, para fazer a modelação da evolução da doença, que "demonstra estarmos neste momento num nível de risco elevado e a necessitar de medidas adequadas". Por isso, sustenta, "se tivermos um alívio nas medidas de restrição o número de casos vai disparar e as medidas que temos agora, como a vacinação, podem não ser suficientes para travar a replicação do vírus".

Este médico de saúde pública, que desde o início da pandemia combate o vírus na linha da frente na região do Algarve, refuta ainda outra referência do documento: "O texto diz que a prioridade é a vacinação, concordamos plenamente, mas, neste momento, estamos no nível máximo de vacinação. As equipas de saúde familiar estão no esforço máximo e já não é possível fazer mais. Portanto, a prioridade deve ser que as pessoas continuem a cumprir as regras de proteção individual, porque se os casos aumentarem muito mais - e uma vez que agora está a atingir uma população que não está vacinada, que só poderá ser daqui a seis meses - o objetivo de termos o máximo de população vacinada vai atrasar", explicou.

Luís Cadinha alertou ainda para um outro problema que se certamente se irá colocar no futuro e que tem a ver com o facto de "de o vírus continuar na comunidade e a replicar-se, o que pode levar a que daqui a uns tempos apareçam novas variantes, mais fortes que fujam à efetividade das vacinas".

No documento, o grupo de 22 especialistas defende que "a vacinação deve ser uma prioridade", mas também que o processo de aceleração deveria ser simplificado, já que está a revelar-se "excessivamente consumidor de recursos humanos, que fazem falta nos centros de saúde para o normal atendimento dos doentes", defendendo que se deveria envolver "agentes da sociedade civil no processo, como, por exemplo, as farmácias, para "aumentar rapidamente a cobertura vacinal". Mas considera também que "medidas avulsas de fim de semana" e outras do mesmo tipo, "já demonstraram não ter impacto no número de novos casos".

A bastonária do Ordem dos Farmacêuticos explicou ao DN que este documento surge como um alerta, "para que o debate sobre a pandemia passe a envolver todos". Aliás, esclarece, "longe de nós estarmos a questionar as medidas adotadas pelo Governo ou achar que estas são tomadas sem boas intenções. O que queremos é chamar a atenção para se pensar e discutir se não haverá medidas mais eficazes para a fase que estamos a viver".

Ana Paula Martins, que é uma das signatárias porque se revê no documento, argumentou ainda: "Estamos numa fase da pandemia diferente da que tivemos nas vagas anteriores, nomeadamente na terceira vaga, e o facto de estarmos a ter mais casos não significa que estejamos com piores resultados, porque não estamos, quer a nível de internamentos quer de mortalidade". E isto, sublinhou: "Não é um milagre, é um trabalho que tem vindo a ser feito, por exemplo, com a vacinação. Por isso, este grupo considerou que era o momento de vir dizer que para uma situação diferente têm de haver medidas diferentes, mais inteligentes, porque medidas semelhantes - como o recolher às 23:00 ou ao fim de semana, não fazem sentido. O vírus existe durante a semana e ao fim de semana. Isto não faz sentido e são medidas como estas que podem gerar alguma confusão junto dos cidadãos".

A bastonária relembrou: "A pandemia é um problema de saúde, mas também tem uma forte componente económica e social, e, se calhar, está na hora de a saúde também olhar para estas vertentes".

Questionada pelo DN sobre o facto de o documento não se referir às medidas de proteção individual, como uso de máscara, distanciamento e higienização, o que poderia dar também uma mensagem confusa à população, a bastonária sublinhou: "Não foram referidas porque continuam a ser fundamentais, não pretendemos o aligeirar destas medidas, mas o repensar de outras, mais restritivas, que achamos que não fazem sentido. Se olharmos para o Serviço Nacional de Saúde vemos que este não está em sobrecarga". Ou seja, sustentou, "o nosso receio é que por estarmos a viver uma quarta fase da pandemia, com os casos a aumentar mas sem a correspondência na gravidade da doença, que possamos começar a ser confrontados com mais restrições, e sem a realidade o justificar".

O presidente da Associação Portuguesa de Médicos de Saúde Pública, Ricardo Mexia comentou, por sua vez, que, a perceção de risco traduzida no documento publicado, "não se coaduna com o que realidade nos diz".

O epidemiologista concorda que, em termos de gravidade, a situação não é idêntica à vivida nas outras vagas. Portanto, a mensagem não está errada, a questão é que a realidade também não é a que vivemos em 2019. Poderemos estar a caminhar para lá, mas, agora, ainda há riscos se não se cumprirem algumas medidas de restrição e de proteção".

Ricardo Mexia salientou ainda que "não tenho ideia de que alguém algum dia tivesse querido o confinamento geral ou deixar para trás os outros doentes, "a verdade é que em determinados momentos houve que tomar algumas medidas em termos de atividade programada sob pena de não conseguirmos responder nem aos doentes covid nem aos outros".

O médico de medicina familiar Rui Nogueira também disse ao DN "compreender o sentido do documento", porque, de facto, vivemos uma fase diferente da pandemia, mas "não é hora de aliciar completamente as medidas que temos O número de casos está a aumentar, e se isto acontece, não podemos estar tranquilos".

Rui Nogueira, ex-presidente da Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar, sublinhou mesmo: "Nesta altura, as regras de proteção individual e o isolamento profilático continuam a ser fundamentais, até porque esta nova variante é muito mais transmissível e não se sabe quando aparecerá outra mais forte e resistente às vacinas". O médico concordou que algumas medidas poderão ser mais adequadas a este tempo - por exemplo, querem abrir bares e discotecas, mas, só entra quem tiver certificado digital com as duas doses de vacinação - e que devemos ser mais ativos e mais rápidos a agir, mas, "primeiro, temos de observar como reage o vírus com as pessoas vacinadas para depois se pensar em aliviar medidas".

Portugal registou ontem 3547 casos de infeção por SARS CoV-2 e mais sete mortes. Neste momento, há quase 50 mil casos ativos e quase 80 mil em vigilância, o número de internamentos está em 778, dos quais 171 são em cuidados intensivos. Para a diretora-geral da Saúde, Graça Freitas, "não se pode permitir que os novos casos cresçam descontroladamente, porque os riscos associados são muito elevados".

(*) Os 22 signatários do documento:

Adelino Leite Moreira, Médico, Especialista em Cirurgia Cardiotorácica, Professor Catedrático da FMUP

Agostinho Marques, Médico, Pneumologista, Professor catedrático jubilado da FMUP

Alberto Barros, Médico, Especialista em Genética Médica, Professor Catedrático da FMUP

Ana Paula Martins, Farmacêutica, Professora Faculdade de Farmácia da UL e Bastonária da Ordem dos Farmacêuticos

André Moreira, Médico, Imunoalergologista, Professor da FMUP

António Ferreira, médico, internista, Professor da FMUP

António Neves da Silva, Clínico Geral, Competência em Medicina Farmacêutica da Ordem dos Médicos

António Oliveira e Silva, Médico, Internista

Caldas Afonso, Médico, Pediatra, Professor Catedrático do ICBAS, Diretor do Centro Materno-Infantil do Norte

Cláudia Carvalho, Médica, Infeciologista

Fernando Torrinha, Médico Radiologista, Chefe de servicos de Radiologia do IPO Lisboa, aposentado

Filipe Almeida, Médico, Pediatra, Intensivista, Professor Universitário

Francisco Rocha Gonçalves, Médico, Cardiologista, Professor Catedrático Jubilado da FMUP

Germano de Sousa, Médico, Patologista Cínico, Ex-Professor Associado de Bioquímica Médica da NMS/UNL, Ex-Bastonário da Ordem dos Médicos.

João Tiago Guimarães, Médico, Patologista Clínico, Professor Universitário

Jorge Nunes de Oliveira, Presidente da APAC (Associação Portuguesa de Analistas Clínicos)

Jorge Torgal, médico, Professor Catedrático de Saúde Pública, NMS/UNK, jubilado, antigo Diretor do Instituto de Higiene e Medicina Tropical -UNL e antigo Presidente do INFARMED

Luís Nunes, médico pediatra e geneticista, ex diretor clínico do Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Central, Professor Catedrático convidado de Saúde Pública da NMS-FCM, UNL

Manuel Gonçalves, Médico, Académico Correspondente da Academia Portuguesa de Medicina, Membro do Expert Advisory Group da Medicines Patent Pool

Nuno Sousa, Médico, Neurologista, Professor Catedrático, Presidente da Faculdade de Medicina da Universidade do Minho.

Paulo Bettencourt, Médico, Internista, Professor da FMUP

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