"Ser secretário-geral do PCP era uma impossibilidade"

Quando em 1 de outubro de 2020 a CGTP cumprir 50 anos, 25 anos e meio desses 50 foram passados com o Manuel ao leme. Antes disso, esteve oito anos e meio como responsável pela organização da central e foi eleito pela primeira vez para um cargo sindical em 1975. Que marcos desse percurso são os mais importantes de Manuel Carvalho da Silva no mês em que fez 70 anos de vida.
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Manuel Carvalho da Silva. Estamos na sede de um novo projeto. Trata-se do Laboratório Colaborativo sobre o Trabalho, o Emprego e a Proteção Social, uma articulação entre empresas, universidades, centros de investigação e, em alguns casos, administração pública. E pouco mais pode adiantar. As mãos enormes e a disponibilidade. Três horas de conversa, uma parte da entrevista não gravada e a obrigatória repetição.

A família, a educação católica e a vivência no Partido Comunista e o trabalho, à visão da vida a partir do trabalho que é uma obsessão. E continua.

Setenta anos feitos neste mês. Porém, mantém a expressão dos 40.

Hummm, não sei. Ando num período de muito desgaste, de algum cansaço. Porque a idade pesa, é claro, mas também porque vivo um período muito ativo com o Laboratório Colaborativo.

Aos 40 anos tinha planos para os 70?

Nunca me projetei muito no tempo, no futuro. A minha lógica de vida é que se vai vivendo e criando, hoje aqui, amanhã ali. Dito isto, os 70 trazem alguns alertas, inevitavelmente. Alguém com 70 anos é idoso e a sociedade não está preparada para lidar com este enorme ganho em tempo de vida e saúde da população, verificado nos últimos 120, 130 anos. Essa vai ser uma das questões mais sensíveis do século que estamos a iniciar.

A peste grisalha.

Um fardo. É urgente articular as relações intergeracionais de forma a sustentar de forma concertada e coerente a conquista alcançada.

Talvez promovendo o aumento da idade da reforma. Que diz a isso o sindicalista?

Muito resumidamente, defendo a coordenação de dois movimentos; por um lado, gerar na sociedade a ideia da impossibilidade e da inviabilidade da entrada antecipada na reforma de forma generalizada; por outro, dar às pessoas a possibilidade de fazerem coisas para além do trabalho. À necessidade de se ir alargando um pouco a idade da reforma deve juntar-se a possibilidade de cada um gerir a carreira, podendo sair da vida ativa se assim o entender. Desde logo, alterando o conceito de vida ativa.

Como lida fisicamente com o envelhecimento?

Fazendo as reparações necessárias às limitações, várias, que vão surgindo.

Ser pai de uma filha de 15 anos leva-o a encarar o tempo de outra forma? Com alguma angústia?

Não lhe chamarei angústia, mas na verdade traz pensamentos sobre como devemos e podemos cumprir o papel de pai na plenitude. E outras exigências. Ter um filho adolescente aos 70 anos é um enorme incentivo, um rejuvenescimento permanente, e muitas vezes forçado [risos], mas acrescenta responsabilidade. Na última década, em dois momentos críticos na minha saúde, dei por mim a pensar: "Caramba, tenho ali uma filha ainda adolescente."

Foi pai muito jovem também. O que mudou?

Em relação aos meus filhos mais velhos nem sempre estive quando devia estar.

Pesa-lhe?

Ainda agora, na festa de aniversário, dei comigo a olhá-los e a pensar que talvez lhes pudesse ter dado mais.

Fale-me dessa festa.

Celebrei uma vida até agora cheia, muito cheia. Celebrei a amizade e os laços que fui criando. Celebrei a presença dos meus irmãos - dos cinco estiveram comigo três - e de amigos de longo percurso. Foi muito gratificante.

E comovente?

Por acaso não me comovi.

Por acaso?

Sim, porque sou de me comover. Concorro com o Jorge Sampaio [risos].

Os números redondos são de balanço.

De partilha com familiares e amigos de uma vida boa e, como disse, muito vivida. Há aspetos em que a minha geração foi privilegiada. Fui testemunha e ator de muitas mudanças, vivi momentos muito entusiasmantes. No meu acaso, e acima de tudo, fui um privilegiado devido à função principal que desempenhei ao longo da minha vida. Ter sido sindicalista e, depois, coordenador e secretário-geral da CGTP-In.

Vamos ao início desse percurso, os primeiros anos da década de 197,0 quando foi despedido de uma fábrica de talheres. Nasceu aí o sindicalista?

Fui despedido, de facto, porque contrariei a posição de um administrador, com o tempo a dar-me razão: a encomenda que ele dizia que não era possível cumprir, cumpriu-se. Estávamos em 1973, tinha acabado de ser pai, não foi fácil. Mas a ligação ao sindicalismo começou antes, na aproximação a alguns trabalhadores qualificados e esclarecidos, ligados ao Sindicato dos Metalúrgicos de Braga. E continuou depois do despedimento, já a trabalhar na empresa à qual mantive ligação até ao fim (Eletromecânica Portuguesa Preh). A primeira vez que fui proposto como representante da minha secção estávamos a dois meses antes da revolução. Depois do 25 de Abril, já com um ligeiro aquecimento, fui para delegado sindical e coordenador da comissão de trabalhadores.

A partir daí teve de discursar para plenários cheios.

Um desafio para quem é, como eu sou, muito reservado e tímido. A primeira vez, então, foi terrível. A fábrica tinha 1200 trabalhadores, nem imagina o quanto sofri. Mas lá me desenrasquei. Começaram até a achar que tinha jeito [risos].

Não é um homem de ruturas.

Não, penso que não sou.

De que maneira conjugou esse lado da personalidade com a luta sindical?

Vivendo situações de enorme tensão. Mesmo depois de já ter experiência, a necessidade que sempre tive de perceber os argumentos dos trabalhadores mas também os argumentos dos patrões deixava-me debaixo de enorme tensão. Queria saber tudo - desde como era o comportamento profissional de quem reivindicava a se havia fundamentação sustentada para as reivindicações, de maneira a garantir a consistência de uma tomada de posição. Uma preocupação enorme que me provocou, até ao último dia, um desgaste imenso. Nem se imagina o que me custava fazer um discurso muito empolgante e entusiasmante sabendo que tinha na base esta ou aquela fragilidade. Dava cabo e mim.

Porque os trabalhadores nem sempre têm razão. Certo?

Há situações em que a razão dos trabalhadores é clarinha como água. Há outras em que o interesse da outra parte também merece ser olhado com muita atenção. A procura desse equilíbrio causava-me imensa ansiedade e instabilidade.

Quais são as características essenciais de um grande sindicalista?

O quadro de valores em que o indivíduo se move, desde logo a solidariedade. A capacidade e a vontade de conhecer os problemas em profundidade. O reconhecimento dos trabalhadores - é obrigatório ser um trabalhador com prestígio. Por último, enorme resistência física. A atividade sindical é desgastante.

Fez o país de lés a lés.

Enquanto coordenador e secretário-geral da CGTP, de automóvel, que sempre conduzi, e apenas em deslocações mais formais, fiz entre um milhão e meio a dois milhões de quilómetros.

Com o contrato coletivo de trabalho no bolso?

Sempre. O contrato e outras leis. É uma marca dos sindicalistas da minha geração - tínhamos de conhecer a lei, interpretar as cláusulas. E, lá está, ter uma predisposição para olhar o outro lado. Porque há uma regra essencial: quando se parte para um conflito é preciso ter noção de como se vai sair dele. Fazer uma grande manifestação ou greve sem ter noção do se vai fazer a seguir é um risco enorme.

Imagino que nem sempre o contrato coletivo resolvesse o problema.

Há casos em que o sindicalista nada mais tem para oferecer ao trabalhador com quem dialoga a não ser a disponibilidade para ouvir e partilhar os problemas. É dessa partilha que surge a força interior, a força de resistência. O sindicalismo é uma escola extraordinária nas relações humanas. Entre 1996 e 1998, aquando da luta muito bonita pela fixação da semana de trabalho nas 40 horas semanais, assumi perante mim o compromisso de acompanhar durante 15 meses a greve dos sábados, comparecendo numa empresa antes das seis da manhã. Cumpri religiosamente - e saiu-me do pelo porque andava a fazer a minha licenciatura. Numa dessas visitas, conheci um grupo de mulheres às quais a patroa, ex-colega, fazia a vida negra. Pouco mais podíamos fazer do que ouvir e apoiar. Deu-se então uma ideia (sempre aconselhando que se cumprissem as obrigações laborais): que todos os dias cada uma delas pensasse em algo que chateasse a patroa.

Grande ideia.

Passados uns tempos, apareceram-nos com um lindo ramo de flores e a boa notícia de que a patroa cedera.

Qual foi a marca distintiva à frente da CGTP?

A persistência nas causas e nos objetivos mais sensíveis.

Persistência, porém, que nunca gerou grandes ódios (ao contrário de outros sindicalistas)

Tenho um ou outro inimigo, mais por frustração deles do que por outra coisa, mas sim, sou um privilegiado. Com dirigentes empresariais nem tanto, mas com alguns empresários criei boas relações. Há até amigos que gostam muito de ir comigo ao restaurante porque sabem que assim serão bem tratados [risos]. As pessoas abordam-me, sempre me abordaram, com muita afabilidade.

Recorda-se de um desses momentos?

Há uma história muito engraçada com Marcelo Rebelo de Sousa, passada nos finais dos anos 1990, uma fase em que o sindicalismo e a minha presença pública estavam muito vivas. Tínhamos estado durante a manhã num evento, no Diário de Notícias. No final, sabendo que eu ia descer a avenida a caminho da sede da CGTP, propôs-se acompanhar-me. "Oh Manuel, vamos os dois." Conforme íamos caminhando, as pessoas cumprimentavam-me, faziam perguntas, metiam conversa e Marcelo Rebelo de Sousa, ainda sem tanta promoção televisiva, cumprimentava, acenava, sorria. A um ou a outro que se dirigiu a ele mas também aos muitos mais que se dirigiram a mim [risos]. Foi um espetáculo, essa descida da avenida. Acabámos a almoçar perto do Rossio e ele sempre a cumprimentar e a sorrir. Já andava a treinar [risos].

Resumidamente: quando em 1 de outubro de 2020 a CGTP cumprir 50 anos, 25 anos e meio desses 50 foram passados com o Manuel ao leme. Antes disso, porém, esteve oito anos e meio como responsável pela organização da central e foi eleito pela primeira vez para um cargo sindical em 1975. Que marcos são os mais importantes desse percurso?

O momento inicial é um momento importante. A preparação do segundo congresso, o congresso de todos os sindicatos, e o impulso do sindicalismo no período 1976/77 /78 para as transformações laborais em Portugal foi algo de fabuloso. Tratou-se de uma fase extraordinária, de um sacrífico enorme, mas muito empolgante. Tive o privilégio de pertencer a essa equipa. Sempre gostei muito do trabalho da organização e de ação reivindicativa que era a área de que me ocupava antes e para a qual acho até que tenho algum jeito. Outro momento importante é, naturalmente, o V Congresso (1986), em que fui eleito coordenador da central.

Dos momentos de luta, das grandes greves gerais, o que guarda?

Tantas lutas marcantes. A última grande, grande batalha, espantosa, foi a fixação neste país das 40 horas como limite máximo da duração semanal de trabalho. Fechámos o acordo na madrugada de um sábado, com contactos informais, depois de muita persistência. Devo dizer, com pena, que tive logo na altura a noção de que a conquista seria subvertida. E foi. Por pressão da vida, muita gente aceitou fazer ganchos para complementar o salário.

Quem mente mais nos números da adesão às greves: o governo, o patronato ou os sindicatos?

A subavaliação dos governos e dos patrões é superior à sobreavaliação dos sindicatos.

Todas as greves são legítimas?

Como tudo na vida não há absolutismos. Mas a verdade é que a greve merece um imenso respeito, desde logo porque pressupõe um esforço enorme de quem faz, os trabalhadores. A greve é uma conquista do movimento operário a que todos os trabalhadores, e bem, acederam depois. Mas nunca se esqueça de que os trabalhadores fazem enorme sacrifício e correm riscos elevados quando vão para a greve.

Mesmo em democracia?

Mesmo em democracia. Ser sindicalizado, mesmo em democracia, não é um ato fácil. A que se juntam hoje outros problemas. Com o enfraquecimento da negociação coletiva, desaparece um dos instrumentos pelos quais os trabalhadores lutavam, a sua base fundamental. O impulso para a eliminação de fatores gregários, a promoção do individualismo, a diluição dos fatores de identidade coletiva tem efeitos muito perniciosos. Desarma os operários, tornando mais difícil a construção da identidade coletiva.

Recorda-se de ter dado razão ao patronato?

Com certeza que dei. Não num momento preciso, mas em resultado de processos. Recordo-me de uma luta duríssima, durante meses, no complexo da Grundig, em Braga. A desconfiança gerada era de tal ordem que os trabalhadores tinham razões para não acreditar em nada do que viesse do patrão. Até ao momento em que se percebeu que estava a ser honesto.

Quais são os sinais?

A desonestidade percebe-se pelos boatos que se põem a circular, pela instrumentalização dos trabalhadores, pelas relações entre as diversas hierarquias. Quando encontrava numa empresa desorganização do espaço, pouca limpeza, autoritarismo, prepotência ou falta de regras de disciplina ficava preocupado.

Referiu os "trabalhadores instrumentalizados". Encontrou muitos traidores da classe?

Alguns, muitas vezes com o enfoque apenas no interesse pessoal. Recordo-me de um plenário na Maia, numa empresa em vésperas de fechar, em que uma senhora, chefia intermédia, não tinha mais nada para dizer que não fosse: "Eu quero é saber os meus direitos." Tanto repetiu que me saltou a tampa. "Antes de mais, diga-me uma coisa: onde é que os comprou?" Por vezes era preciso dar um abanão. Porque também havia gente assim, que cedia por uma posiçãozinha. Outros, porque tinham mesmo visões diferentes da sociedade. Vivemos num país em que o conflito é considerado uma anomalia, quando não é.

Destes 25 anos de secretário-geral há alguma coisa de que se arrependa?

A resposta a essa pergunta foi variando com a idade. Aos 70 anos, digo que aqui e ali poderia ter sido mais humano, por vezes valorizado mais as relações com cada um dos meus camaradas de equipa.

Por exemplo?

Responder com menos rispidez a alguns camaradas. Partilhar um pouco mais.

Não é de dar murros na mesa.

Sou sobretudo determinado. Persistente. Chateava por persistência. Se um assunto caísse numa reunião, retomava o tema na próxima. Mas também tive as minhas irritações feias.

Lidou seguramente com grandes negociadores.

Encontrei empresários, portugueses e estrangeiros, muito capazes. Encontrei pessoas duras que do ponto de vista humano eram interessantíssimas. Encontrei negociadores que apenas queriam fazer mal e outros, igualmente duros, decididos a resolver os problemas. Já no que diz respeito aos dirigentes empresariais, salvo raras exceções que não vou nomear, a qualidade não é assim tão boa. Quem diz que a qualidade dos sindicalistas baixou esquece-se de olhar para os responsáveis das associações patronais.

Tinha a noção de que era temido?

Não.

Como se preparava para os combates?

Com atividade física, com a procura exaustiva de informação, com a troca de impressões. Aprendi imenso com muitos camaradas e com centenas de sindicalistas anónimos. Tive a sorte de contar com o apoio fundamental do Daniel Cabrita, referência da luta sindical antes do 25 de Abril, amigo de sempre. Um dos que agora celebraram comigo os meus 70 anos.

O caminho do sindicalista pode ser armadilhado?

Pode e é. Dou-lhe um exemplo: ainda hoje se diz que a Opel saiu da Azambuja porque os trabalhadores foram excessivos nas reivindicações. Patranha. Vivi o problema de uma forma muito direta, cheguei a encontrar-me clandestinamente com um anterior gestor, e ficou claro que o último tinha por missão tirar a Opel de Portugal. Disse-lhe numa reunião. "Homem, não faça mais fitas." Sei do que falo. Porém, ainda hoje se diz que a culpa foi dos trabalhadores.

A ideia de que os portugueses andaram a viver acima das possibilidades é outra armadilha?

Claramente, e é velha. Nem queira saber a quantidade de vezes que me deparei com bancas de venda de crédito bancário no hall das empresas. Até a mim se dirigiam. Sobre isto, tenho exemplos quase anedóticos. Durante uns anos, em vésperas de Natal, o Silva Lopes (José) convidava-me para almoçar. Íamos muito ali ao terraço do Hotel Mundial. Num desses almoços, estava ele a criticar o consumo desenfreado dos portugueses, recebo uma mensagem do Montepio a oferecer-me crédito para consumo. "Ó Silva Lopes, olhe para o que acabei de receber da instituição a que preside." Com o João Salgueiro, com quem me cruzava no Conselho Económico e Social, o mesmo. "Esta coisa do cimento armado e das rotundas", dizia-me, "já produziu nem sei quantos milionários". E acrescentava rapidamente: "Quando falo em milionários refiro-me a pessoas que se apropriaram de mais de cem milhões de contos" [risos].

Não tem heróis. Quem são as figuras de referência?

Revejo-me em pessoas de grande dimensão humana e Mandela é um exemplo maior. Tive o privilégio de ser um dos portugueses que assistiram ao primeiro congresso do ANC depois da sua libertação, de ter atravessado as zonas mais tensas e de ter sido por ele recebido. Admiro muito Bento de Jesus Caraça, pensador fabuloso, cujos textos exerceram uma enorme influência em mim. Foi um privilégio manter algumas conversas profundas com Álvaro Cunhal, cuja dimensão intelectual e conhecimento da vida impressionavam.

Nunca escondeu a admiração por Lula da Silva.

Estive presente na primeira tomada de posse dele a seu convite. Mas para o segundo mandato já não me convidou [risos].

Houve quem lhe chamasse o Lula português.

Provavelmente, pessoas bem capazes de pensar em arranjar um Bolsonaro para Portugal [risos].

Ficou muito desiludido com o caso Lava-Jato?

Acredito que história dará um lugar valorativo a Lula. O balanço dos seus mandatos irá mostrar-se favorável ao povo brasileiro, ao desenvolvimento do Brasil e a uma nova e positiva dinâmica nas relações internacionais.

Ficou surpreendido com as acusações de corrupção a Lula?

O PT chegou ao governo com um projeto de mudança e, de facto, transformou o Brasil e não só - teve impacto no plano internacional graças a um programa ambicioso e entusiasmante. Lula permitiu que muitos brasileiros saíssem da pobreza e que outros atingissem as classes médias. Ora as classes médias querem uma ascensão contínua. Depois, o partido cometeu o erro monumental de entrar na onda de práticas que vinham de trás. Ali, a corrupção é velha. Conheci extraordinários dirigentes do PT que acabaram a fazer jogo sujo para o partido. Um dia, também ouvi a Lula algo que me preocupou. "Pelas empresas brasileiras faço tudo." Ora há negócios que não podem ter cobertura.

Que recorda dos primeiros anos em Viatodos, aldeia próxima de Barcelos?

Muito pequenino, com 3 anos: recordo-me de ir com os primos - tenho mais de 40 primos direitos -, cair de uma árvore e de aquilo ter sido uma complicação, recordo-me de ficar muito assustado com a luta entre duas vacas barrosãs e do chifre de uma delas quase se enfiar no meu bibe, recordo-me do funeral de um vizinho, um velhinho, e pensar pela primeira vez no que significaria a morte. Lembro-me do toque a finados quando morre uma criança. Recordo-me do dia em que fiz 6 anos. Andava a brincar na eira quando a minha mãe, que fazia o pão em casa, apareceu com um pequeno bolo salgado. "Toma, são os teus anos." Foi das melhores prendas da minha infância. Nunca passei fome. Entenda-se ter acesso a nada mais do que broa, batatas e, quase sempre, a sopa.

Gostava de ter tido uma bola.

Sonhava com essa bola. Imaginava que um dia cairia de um telhado, aos meus pés. Nunca caiu e o meu pai nunca ma deu.

Começou a trabalhar muito cedo.

Fiz a quarta classe e fui trabalhar para o campo. Mas um professor convenceu o meu pai a deixar-me ir à escola industrial. Fiz o curso de montador eletricista na Escola Carlos Amarante, em Braga.

Um eletricista que cresceu numa casa sem eletricidade.

A eletricidade era para mim um elemento novo e extremamente atraente. Era um sonho. Tinha medo do escuro, vivia num mundo dominado pelos medos que se pregavam na igreja. Tenho lembranças de pregações do inferno assustadoras. À noite, sem luz, contavam-se histórias de bruxas à lareira. O ambiente era aterrador.

Rezava-se o terço, em casa dos pais, à lareira?

No final ia beijar a mão do meu pai.

Nessa época e em muitas famílias, esse era o momento de maior contacto e proximidade entre um pai e um filho.

Exatamente o meu caso. Nesse mundo rural as pessoas tinham pouco tempo e espaço para os afetos. Os meus pais fizeram tudo o que puderam pelos filhos, mas não tinham uma educação para os afetos. Os afetos tinham também um tratamento de classe. Bem via, à distância, como os miúdos de outras classes sociais eram tratados. Aí sim, havia espaço para os afetos. Com os meus pais, e com pessoas que viviam muito pior que os meus pais, não.

Fascinado por uma bola e pelo rádio de um avô.

Era outro fascínio. Esse meu avô, mestre marceneiro com muito talento, tinha mais cultura, outra vivência. Estivera no Brasil. Mas também falávamos muito pouco. Era muito rigoroso, muito austero. Em casa dele comia-se um pouco melhor mas exigia muita disciplina à mesa. Morreu tinha eu 10 anos.

Na família cruzam-se classes sociais diferentes.

Um dos meus avôs fez um casamento interclassista. O filho, meu pai, não tinha formação, não sabia ler, mas foi herdeiro das poucas terras que o meu avô tinha. A família da minha avó paterna, avó que não conheci, afastou-se após o casamento. Do lado materno, a minha avó vinha de famílias com algumas possibilidades, mas os tios dela estouraram tudo. Nove irmãos e nenhum deles trabalhava.

Ainda é capaz de resolver um problema elétrico?

Ainda sou. Se bem que a minha mulher também se arranja.

A guerra colonial e um miúdo minhoto que de repente se vê em África, entre matar e morrer.

Fui carregado de limitações, mas não era dos piores. Havia malta que nunca tinha saído da sua aldeia. 20, 21, 22 anos e ali metidos, rodeados de arame farpado. Ao contrário de amigos, envolvidos nos movimentos estudantis, eu era um operário, a minha consciência política não estava ainda formada. Tinha uma informação mínima sobre o que se passava, alguma repulsa pelo regime, mas não mais do que isso. Portanto, o que mais me chocou quando cheguei a África foi perceber que o que se dizia sobre a guerra não correspondia à verdade. Aqui não era nada nosso. Não tínhamos ali identidade alguma.

Foi para Angola, norte de Cabinda em 1970. Esteve 25 meses no mato. 25 meses de medo.

Não fiz muitas operações no mato porque era responsável pelas transmissões e pela criptografia. Mas lidei com sentimentos difíceis. É muito difícil controlar a reação perante camaradas estropiados em emboscadas. Havia muita raiva. Disparei, disparei mas nunca matei ninguém. Tenho a certeza. Há quem não saiba se matou ou não matou, há quem não se lembre ainda hoje onde esteve. Todos os que passaram pela guerra colonial carregam o seu peso. Os da minha companhia encontram-se uma vez por ano. Todos nós temos marcas. Um dos meus grandes amigos da guerra colonial resolveu comprar uma pequena pedreira para descarregar na pedra toda a tensão daqueles anos.

No seu caso, como lida com o stress?

Com a idade as manifestações são mais fortes. Em stress sofro um bocado, por vezes chateio os que me estão mais próximos. Na guerra descarregava lendo e escrevendo. Entre cartas aos meus pais e à minha namorada tenho para cima de 300.

Que autores lhe chegavam às mãos?

Curioso, toda a literatura do Mao Tsé-Tung [risos]. As Vinhas da Ira (John Steinbeck), O Prémio (Irving Wallace), muitas coisas do Camilo, do Eça, do Jorge Amado. Chegámos a ter uma espécie de minibiblioteca. O Pavilhão dos Cancerosos (Alexander Soljenítsin) marcou-me muito. Um livro em que o autor expressa a dissidência mas que me levou à aproximação ao PCP.

PCP, educação católica, família. São os três pilares destes 70 anos?

A família é um deles, sem dúvida. O segundo, resulta da mescla entre a formação católica, que se foi distanciando da visão católica institucional, e a vivência política com referência no Partido Comunista. Essa mescla é seguramente um ancoradouro. Há depois um terceiro patamar, profundíssimo, que é a ligação ao trabalho e a visão da vida a partir do trabalho. Esse patamar tornou-se quase esmagador.

Obsessivo?

Sim, por vezes erradamente obsessivo.

Os sindicatos nunca foram tão importantes quanto agora?

Os sindicatos têm quase dois séculos de existência e ação, na forma e na missão histórica que lhes conhecemos. Atravessaram fases de grande dificuldade em que foram quase esmagados. Mas recuperaram sempre. Hoje, os desafios com que se deparam e as dificuldades que acumularam podem levar-nos a dizer que fazem muita falta, são muito importantes para responder às imensas injustiças e à enorme exploração que marcam o mundo do trabalho.

No futuro, o que virá a significar "trabalho digno"?

O trabalho que assentar no tripé constituído pela liberdade de organização dos trabalhadores (também dos patrões), pelo direito e efetivação da contratação coletiva e também pela luta social e política contra a exploração, condenando o trabalho escravo, o trabalho infantil e as desigualdades profundas. O futuro vai construir-se através das mesmas bases, em contextos e formas que vão mudando continuamente.

A discriminação salarial por género deve encabeçar o combate sindical?

É um problema que persiste, que é necessário combater e resolver. Deve estar, sem dúvida, nas agendas sindicais. É uma questão-chave para o desenvolvimento das sociedades.

Assume-se feminista?

Tomando o conceito no sentido da defesa plena da igualdade entre homens e mulheres, sim, sou feminista. Contudo não nego défices culturais e práticas típicas da minha geração que nem sempre consigo ultrapassar.

É sindicalizado?

Sou sindicalizado com quotas em dia num dos sindicatos da CGTP-In - o Sindicato dos professores da Grande Lisboa.

Camaradas, lutemos unidos porque é nossa a vitória final?

Continua a ser uma bela utopia. E portanto não se deve abandonar. Saindo do caráter como matriz de sociedade pode ser visto como o compromisso e a ambição de resolver um problema. Pode de facto significar a vitória em muitos combates.

Há pouco, a propósito da educação católica, faltou perguntar: acredita em Deus?

Acredito em algo de intrínseco à origem e luz da vida.

Moveu-se no meio dos trabalhadores, mas também num espaço ocupado maioritariamente por gente licenciada, com ativismo nos movimentos estudantis. Sentia falta dessa experiência?

Senti falta de não ter estudado tanto quanto queria na juventude, senti falta de arrumar conhecimentos adquiridos pela vida vivida e ir conquistar outros de que sentia falta.

Não foi deputado. Porquê?

Valorizo muito a função de deputado, contudo nunca me entusiasmou. Fui atraído crescentemente para o trabalho sindical, para o contacto com os trabalhadores e para as suas lutas solidárias. Aí sempre me senti muito bem.

Assistiram à defesa de tese - mais de quatro horas e "um massacre" - do sociólogo-sindicalista pessoas de todas as famílias políticas e sociais. Também porque sempre olhou para a sociedade com alguma abertura, assumindo-se como comunista heterodoxo. Foi por isso que não chegou a secretário-geral do PCP?

[Risos]. Ser secretário-geral do PCP era uma impossibilidade. Quem nos conhece bem - ao partido e a mim -, à minha formação cultural, facilmente concluiria que nunca seriam criadas as convergências necessárias para que isso pudesse acontecer.

O que os uniu e separou?

O que conta foram as convergências e os compromissos que existiram, muitos e longos. Tive no PCP e nos militantes do partido uma escola, apoio, solidariedade. Tenho uma gratidão imensa.

Como se descreveria enquanto militante?

Posso dizer com sinceridade e, julgo, com verdade que fui um militante empenhado ativo, mas com enfoques sempre, nas causas e nas batalhas dos sindicatos e sempre marcado pelas minhas origens e valores, vindos de vários campos.

Saiu do PCP em 2013. Porquê nessa altura?

Já me tinha afastado da militância antes. Entrei para o partido em 1975, fui um militante empenhadíssimo, mas essencialmente um comunista que está no sindicalismo. Fui saindo, num processo natural. Nada de muito especial aconteceu nesse ano, ao contrário de noutras alturas, essas sim, de tensão, a ponto de me ter apetecido romper com o partido. De resto, expressei formalmente essa vontade no final dos anos 1980, princípios dos anos 1990. Porém, numa conversa com Álvaro Cunhal sobre o assunto retomei o compromisso e continuar.

Um desses momentos de tensão aconteceu em 2009, quando decidiu apoiar a candidatura de António Costa à Câmara de Lisboa.

Esse sim, foi um momento delicado. Umas semanas antes das eleições a candidatura da direita estava em grande ofensiva. Senti que tinha de apoiar António Costa. Fi-lo sem que alguém mo tivesse pedido. Apenas informei a minha mulher e um grande amigo. Hoje arrependo-me de não ter feito as coisas de outra maneira em relação ao partido. Podia ter falado primeiro com a direção do PCP. Mas também sabia que ia ser sujeito a grandes pressões e eu estava decidido, e bem, a apoiar António Costa.

Foi sondado para apresentar uma candidatura à presidência da República (eleições de 2016). Por que razão decidiu não avançar?

Não foi a primeira vez que falaram comigo sobre essa hipótese e em 2011 a pressão não foi menor do que em 2016. Mário Soares ficava fulo com a minha nega e para me provocar dizia-me: "Não vai porque não tem coragem." Não se tratou disso. Em 2011, o desentendimento Soares/Alegre era fatal para a esquerda e, teimosamente, ambos levaram birra até ao fim. Deixar-me ir para o meio da bagunça seria um disparate. Na caminhada para as eleições de 2016 houve múltiplos contactos ao longo de muito tempo. Até de candidatos que previamente me perguntaram se eu avançaria. Tive convites para pisar palcos que eu, por coerência, não quis pisar. Em última instância, não aceitei por três razões: a diversidade de apoio podia não sustentar a coesão necessária; alguns problemas de saúde que entretanto resolvi bem; fatores de tensão à esquerda, que senti no final de 2014, princípios de 2015, que só prejudicariam convergências como as que deram origem à geringonça.

A geringonça teria sido possível com Álvaro Cunhal?

Álvaro Cunhal era um político extraordinário, pragmático, e quando necessário demonstrou-o. Por exemplo em 1986 quando pediu aos militantes do partido que votassem em Mário Soares, mesmo tapando a cara do candidato, mesmo engolindo um sapo. Portanto, tendo em conta as circunstâncias em que se formou a coligação e o apelo dos militantes de base à união da esquerda, acredito que estaria a favor.

Acredita que pode repetir-se?

Nos termos exatos desta é difícil. Mas esta solução política parlamentar e de governo tem sido importantíssima para o país e para os portugueses.

E só existiu porque grande parte dos portugueses queriam mesmo que as forças de esquerda se entendessem. Se assim não fosse, Cavaco Silva e a direita tinham-na inviabilizado. Porque durante muitos anos tive o desejo de que isso acontecesse e porque lutei nesse sentido, fiquei muito feliz.

António Costa, Soares, Cavaco. A extrema-direita: "Que eles andam aí, andam".

Cavaco Silva.

Alguém que de forma arrogante carrega em si e na sua ação polícia o negativo que lhe está associado.

Mário Soares.

Da relação com Mário Soares guardo registos de cumplicidades positivas, mas também apreciações menos boas. É cedo ainda para tratar desses registos.

António Costa.

A António Costa, por agora, há que fazer apelos e exigências. Que não nos desiluda, que não queira ficar prenhe de poder, que seja timoneiro da governação por bons anos para ajudar a transformar e a desenvolver a sociedade portuguesa.

Acredita na criação de um partido de extrema-direita em Portugal?

Bom, que eles andam aí, andam. Basta vermos algumas declarações feitas a propósito de Bolsonaro. Há gente no CDS com nostalgia do fascismo e que não o esconde. Há projetos em ensaio direto e indireto, a verem como as coisas evoluem, na expectativa de poderem ocupar esse espaço.

Do que conhece dos portugueses, em que resultado apostaria num referendo sobre a pena da morte?

Tenho a certeza de que rejeitariam a pena de morte.

Como reagir ao aparecimento de Bolsonaro?

Devemos evitá-lo. Dando densidade à democracia, valorizando a participação das pessoas e a dignificação do trabalho, distribuindo melhor a riqueza. Respeitando a multiculturalidade.

Uma candidatura em 2021 está fora de hipótese?

Tenho 70 anos, tanto que fazer na minha vida académica e vontade de estar mais com a minha família.

Que palavras marcam o seu percurso?

Persistência, trabalho e dignidade.

Como gostaria de ser reconhecido?

Se disserem que fui um sindicalista honesto e empenhado fico muito contente.

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