Scorsese e DiCaprio: Histórias e mitos "Made in USA"
Geoffrey Standing Bear (à letra: Geoffrey Urso em Pé) é uma personalidade central na organização das comunidades índias dos EUA: depois de mais de três décadas em que exerceu advocacia, foi eleito líder da Nação Osage em 2014. Para lá da gestão do território Osage, o seu trabalho tem tido como preocupações nucleares a preservação das tradições e o uso quotidiano da língua Osage. Num encontro cujo simbolismo ficará para a história do cinema americano, Geoffrey Standing Bear recebeu a visita do cineasta Martin Scorsese no dia 26 de julho de 2019.
O encontro ocorreu na reserva de Pawuska, no estado do Oklahoma, e teve como tema principal a produção de um novo filme de Scorsese, Killers of the Flower Moon. Trata-se da evocação de um capítulo trágico da história dos Osage, há um século. Foi em maio de 1921 que o assassinato de Anna Brown, uma mulher Osage, surgiu como um dos primeiros sinais de uma sinistra conspiração contra os membros da Nação Osage: dezenas de mortes (muitas delas nunca esclarecidas) deixaram uma herança trágica e, afinal, pouco conhecida.
Algo mudou em 2017, com a publicação de Killers of the Flower Moon, de David Grann, livro em que o filme de Scorsese se baseia, numa adaptação a cargo de Eric Roth. Grann, jornalista da revista The New Yorker, desenvolveu uma minuciosa investigação sobre essa conspiração gerada por razões económicas muito concretas. Na verdade, na década de 20 do século passado, os Osage contavam-se entre os cidadãos mais ricos dos EUA: a descoberta de imensos jazigos de petróleo nas suas terras, além de ter mudado radicalmente as condições de vida da comunidade, tornou-os alvo das mais variadas formas de chantagem dos seus "representantes" legais, muitas vezes matando-os a tiro ou através de processos de metódico envenenamento.
Como noticiava o Indian Country Today (20 julho 2020), com um orçamento superior a 200 milhões de dólares, Killers of the Flower Moon será o mais caro filme de sempre dedicado à história dos índios. Aliás, tal investimento irá, por certo, inscrever-se na própria história de Hollywood como mais um sinal da crescente influência das plataformas de streaming. A Paramount, o estúdio que se interessou pelo projeto, não quis ir além de 150 milhões; na prática, isso abriu caminho à Apple que se dispôs a garantir o financiamento necessário, encarando-o como um investimento de prestígio capaz de mudar o seu peso industrial e, no limite, proporcionar uma boa performance nos Óscares. A Paramount ficou com os direitos de distribuição nas salas de todo o mundo para, mais tarde, Killers of the Flower Moon surgir como um exclusivo da AppleTV+.
Aos 78 anos (nasceu em Nova Iorque, a 14 de novembro de 1942), Scorsese mantém-se, assim, na linha da frente da produção americana. Este é apenas um dos vários projetos que tem em andamento, e não apenas como realizador: está ligado, por exemplo, à produção executiva de The Card Counter, o novo filme de Paul Schrader (que para ele escreveu o argumento de Taxi Driver), e irá produzir Maestro, filme de e com Bradley Cooper sobre Leonard Bernstein. A rodagem de Killers of the Flower Moon arrancou no dia 19 de abril, no Osage County - Scorsese volta a dirigir o actor que, nos últimos vinte anos, tem sido o símbolo mais forte do seu cinema: Leonardo DiCaprio.
Aos 46 anos (nasceu a 11 de novembro de 1974, em Los Angeles), DiCaprio é, de facto, uma das verdadeiras estrelas planetárias do cinema: a sua imagem de marca não se diluiu na rotina devoradora dos "efeitos especiais" de super-heróis e afins. Em Killers of the Flower Moon, interpreta Ernest Burkhart, casado com uma mulher Osage, Molly, irmã de Anna Brown - será, em duas décadas, a sexta vez que trabalha sob a direção de Scorsese.
A sua primeira colaboração aconteceu num filme, Gangs de Nova Iorque (2002), que também explora memórias e traumas da história dos EUA. Nele se regressa a um tempo que talvez possamos definir como uma "pré-história" mítica da cidade de Nova Iorque: a acção decorre no ano de 1862, na zona de Manhattan, cenário de violentos confrontos de gangs ligados a diferentes credos religiosos - DiCaprio interpreta Amsterdam Vallon, personagem eminentemente trágica que tenta vingar-se de William Cutting (Daniel Day-Lewis), o homem que matou o seu pai.
Scorsese e DiCaprio acabaram por criar um espaço de colaboração e cumplicidade que pode fazer lembrar outras alianças que existiram na época áurea do classicismo de Hollywood - por exemplo, entre Alfred Hitchcock e James Stewart. Curiosamente, O Aviador (2004), o projeto que, por assim dizer, selou essa colaboração tem como pano de fundo, precisamente, a "fábrica de sonhos": DiCaprio interpreta o magnate Howard Hughes que, a par da paixão por aviões, tentou afirmar-se como produtor de cinema. Entre as figuras lendárias de Hollywood que o filme evoca estão Katharine Hepburn, Ava Gardner e Jean Harlow, interpretadas, respectivamente, por Cate Blanchett, Kate Beckinsale e Gwen Stefani (Blanchett ganhou o seu primeiro Óscar, na categoria de atriz secundária).
O filme seguinte, The Departed - Entre Inimigos (2006), é um dos vários títulos da obra de Scorsese que mergulha nos labirintos do crime organizado, mais uma vez opondo DiCaprio a uma cruel figura "paterna": ele é, desta vez, um polícia infiltrado no mundo de um gangster, interpretado por Jack Nicholson. Dir-se-ia que, a par de alguns filmes em que foi dirigido por outros cineastas - lembremos os casos exemplares de Celebridades (1998), de Woody Allen, ou Apanha-me Se Puderes (2002), de Steven Spielberg -, DiCaprio se foi libertando da dimensão "juvenil" da sua imagem, assumindo personagens cada vez mais complexas e desafiantes. The Departed recebeu o Óscar de melhor filme do ano, valendo a Scorsese, na categoria de realização, aquela que é, até agora, a sua única estatueta dourada.
Nos dois filmes seguintes sob a direcção de Scorsese, DiCaprio emerge como figura dominante: primeiro, Shutter Island (2010), "thriller" com uma dimensão fantástica, baseado num romance de Dennis Lehane; depois, O Lobo de Wall Street (2013), revisitando a saga de uma personagem verídica, Jordan Belfort, corretor da bolsa que se transforma em protagonista de um dantesco esquema de manipulação financeira.
A figura de Belfort é, seguramente, uma das personagens mais complexas de toda a carreira de DiCaprio, a meio caminho entre a crua realidade e a transcendência do mito. A sua definição dramática envolve, não apenas muitas actividades ilegais, mas também essa "coisa" que lhe confere um misto de exuberância e vulnerabilidade. A saber: o dinheiro. Mais do que isso: Scorsese encena o dinheiro como "matéria" de trocas e veículo de poder que se vai transformando em fluxo de informações que vivem, morrem e ressuscitam nos circuitos virtuais do capital.
Chegou a pensar-se que O Lobo de Wall Street poderia ser o filme que, finalmente, lhe daria um Óscar... Mas não, o vencedor foi Matthew McConaughey, com O Clube de Dallas. DiCaprio teria a sua estatueta dourada, dois anos mais tarde, graças a The Revenant: O Renascido, de Alejandro González Iñárritu. Entretanto, a rodagem de Killers of the Flower Moon deverá durar, no mínimo, sete meses (até novembro), o que significa que poderá ser um título a integrar a corrida aos Óscares em finais de 2022.
Na aliança criativa Scorsese/DiCaprio, este é também um projecto que permite concretizar o desejo de reunir um trio muito especial. Que é como quem diz: integrar Robert De Niro, outro nome lendário do universo do cineasta, com quem rodou oito longas-metragens, de Mean Streets (1972) a O Irlandês (2019) - De Niro interpreta William Hale, tio de Ernest Burkhart, figura central na tragédia do povo Osage.
O certo é que DiCaprio e De Niro já tinham filmado uma vez sob a direcção de Scorsese: foi na curta-metragem The Audition (2015), aliás contracenando com o próprio Scorsese. Surgem os três nos seus próprios papéis; encontram-se em Manila, seguindo depois para Macau, para o Studio City (hotel e casino que financiou a produção), a fim de que o cineasta possa escolher um deles como actor principal do seu próximo filme. O tom é de deliciosa paródia, com DiCaprio e De Niro a tentarem conquistar as boas graças de Scorsese, ao mesmo tempo que se vão insultando de modo mais ou menos elegante... Até que Scorsese pensa que a melhor solução talvez seja Brad Pitt...
Isto sem esquecer que o primeiro papel importante de DiCaprio aconteceu em A Vida deste Rapaz (1993), contracenando, precisamente, com De Niro, sob a direcção de Michael Caton-Jones. Baseado nas memórias do escritor Tobias Wolff, o filme evoca a sua adolescência vivida com um padrasto particularmente agressivo. DiCaprio consegue aí uma composição fulgurante, em tudo e por tudo distante de qualquer visão maniqueísta da juventude. É ele próprio que reconhece a dívida profissional e afectiva que tem em relação a Caton-Jones e De Niro, até porque começou por pensar que a sua audição para o papel (com apenas 15 anos) tinha sido desastrosa... Acontece que De Niro não ficou com a mesma opinião e disse a Caton-Jones: "Há qualquer coisa de interessante naquele miúdo... É melhor chamá-lo."