"A polícia está a chegar, o exército está a chegar/ Confusão por todo o lado/ Sete minutos depois/ Tudo se acalmou, jovem irmão/ A polícia foi-se embora/ O exército desapareceu/ Deixam sofrimento, lágrimas e sangue/ A sua marca registada." Em 1977, depois de já ter sofrido às mãos da polícia e do exército (a segunda vez deixou-o em estado grave), Fela Kuti denunciava mais uma vez a brutalidade das forças de segurança da Nigéria em Sorrow, Tears and Blood. Até à sua morte, 20 anos depois, o compositor maior do afrobeat continuou a criticar a corrupção sistémica e os abusos das elites e dos militares. O seu filho Femi Kuti pegou no testemunho e continuou na mesma toada..Chegados a 2020, o Estado de direito continua uma miragem: as forças de segurança torturam, chantageiam e executam nigerianos. A diferença é que, nos dias de hoje, o ativista político Fela Kuti poderia ter uma muito maior audiência graças às tecnologias e ao aumento da população letrada..Em maio, a Amnistia Internacional voltara a alertar, num relatório, para o mais recente problema das forças policiais: as violações dos direitos humanos cometidas pela Brigada Especial contra Roubos (SARS, sigla em inglês), uma unidade da polícia nigeriana encarregada de combater crimes violentos. Mas desde 2014 aquela organização não governamental comprovou que a própria brigada é responsável por crimes violentos, incluindo execuções extrajudiciais, tortura, violação e extorsão. A Amnistia acusa, com documentos e testemunhos, que a SARS, entre janeiro de 2017 e maio de 2020, foi responsável por 82 casos destes crimes..As vítimas sob custódia da SARS têm sido sujeitas a "simulacro de execução, espancamento, socos e pontapés, queimaduras com cigarros, waterboarding, quase asfixia com sacos de plástico, posições corporais extenuantes e violência sexual"..O relatório da Amnistia conclui que os jovens entre os 17 e os 30 anos são os que correm maior risco de prisão, tortura ou extorsão pela SARS. A brigada procura jovens do sexo masculino bem vestidos, com smartphones, de preferência em automóveis novos, mas também em rusgas nas ruas, em centros de projeção de televisão e em bares. Um esquema habitual nesses casos é o de acusarem o jovem de ser autor de uma fraude na internet, conhecidos como Yahoo Boys na linguagem local. Os suspeitos são então levados para a esquadra e ameaçados com acusações de crimes, a menos que concordem em pagar grandes somas de dinheiro para a fiança..No final de 2017, os ativistas dos direitos humanos nigerianos lançaram a campanha #EndSARS. Nas principais cidades do país mais populoso do continente africano (a caminho dos 200 milhões), centenas de pessoas juntaram-se com o objetivo de pressionar o Governo para acabar com a SARS, bem como para levar à justiça os agentes da força especial que tenham cometido crimes..A polícia nigeriana começou por desmentir e ameaçar os ativistas, mas as redes sociais tiveram um papel fundamental ao permitir a disseminação de vídeos e fotografias dos abusos. O Governo acabou por admitir reformas, enquanto uma lei a proibir a tortura por parte das forças policiais entrou em vigor. Mas a realidade não acompanhou o texto legal..No ano passado, segundo o Council on Foreign Relations, pelo menos 1476 pessoas foram mortas pelas forças de segurança. Neste ano, nas primeiras semanas de confinamento, a polícia matou mais civis (18) do que o coronavírus (12), como a BBC noticiou..As manifestações voltaram há duas semanas, depois de ter circulado na internet um vídeo que mostrava um jovem a ser espancado, aparentemente pela SARS..Protestos generalizados contra a polícia da Nigéria tornaram-se violentos, com os manifestantes a serem atacados por bandos armados nas ruas de várias cidades, bem como pela polícia..Twittertwitter1316739282674032643.Desde que os protestos começaram, pelo menos dez pessoas foram mortas e centenas ficaram feridas, segundo a Amnistia Internacional, que acusa a polícia de usar força excessiva contra os manifestantes. Um pouco por todo o país, grupos de homens armados com facas, pedras, bastões, e garrafas partidas aterrorizaram os manifestantes..Os manifestantes suspeitam que os atacantes foram contratados pela polícia para dispersar os protestos.."Só um Governo irresponsável contrata bandidos para atacar manifestantes pacíficos", disse o porta-voz do Partido Popular Democrático da oposição, Kola Ologbondiyan, num comunicado. Houve quem pedisse a demissão do presidente Muhammadu Buhari, caso do líder do Partido Democrático do Povo, Fany-Kayode..Fora do país, o movimento Black Lives Matter, nos Estados Unidos, músicos como Kanye West, Trey Songz ou Chance the Rapper, o ator John Boyega, a modelo Naomi Campbell ou o administrador do Twitter Jack Dorsey endossaram o movimento EndSars..Os manifestantes são encorajados pelo apoio entusiástico que receberam na Nigéria e dos Estados Unidos, disse o manifestante Timi Olatunju. A atenção internacional ao problema da brutalidade policial "contribuiu para os protestos que receberam apoio global, incluindo dos EUA, onde o rapper internacional Kanye West e Black Lives Matter demonstraram interesse", disse Olatunju.."Muito amor aos corajosos ativistas nigerianos #EndSARS. O movimento pela justiça e dignidade é global e estou orgulhosa por ver os nossos parentes erguerem-se. É preciso pôr fim imediato à brutalidade policial e à morte extrajudicial de pessoas em #Nigéria. #BlackLivesMatter #EndSarsNow", tuitou Opal Temeti, cofundadora de Black Lives Matter..Twittertwitter1314999217786675200."#BlackLivesMatter ergue-se com o povo nigeriano e os manifestantes! #EndSars," tuitou a Black Lives Matter..Em resposta aos protestos do #EndSARS, o governo nigeriano anunciou no dia 11 que iria dissolver a unidade e criar uma brigada tática..Twittertwitter1315277838371749889.Mas o encerramento da SARS não deixou os manifestantes satisfeitos. Por um lado querem o fim da violência e corrupção policial, bem como o respeito pelos direitos humanos. As suas exigências incluem ainda a libertação de todos os manifestantes detidos, justiça para as vítimas da brutalidade policial e compensação para as vítimas e as suas famílias, bem como a acusação dos suspeitos..Por outro lado, as repetidas promessas de reforma policial já têm anos e não se concretizaram, e nos dias subsequentes, a SARS, apesar de oficialmente extinta, continuou a fazer raides noturnos em bairros.."Estes manifestantes têm sido recebidos com violência e uso excessivo da força. Os nigerianos são céticos quanto à promessa das autoridades de pôr fim às atrocidades cometidas pela polícia, porque as anteriores alegações de reforma da SARS revelaram-se palavras ocas", disse Osai Ojigho, diretora da Amnistia Internacional da Nigéria.