Foi em 2014 que Sara Gonçalves resolveu lançar a petição online. Chamava-se "Pelo encerramento dos shoppings aos domingos". Cerca de 20 mil pessoas assinaram o documento. E assim ficou, no esquecimento. Acabou de ganhar nova vida, com as declarações do bispo do Porto, D. Manuel Linda, que na homilia da Páscoa se manifestou contra o trabalho aos domingos. Em apenas três dias, a petição já conta com 55 884 assinantes e o número não para de crescer. "Agora sinto que tenho a responsabilidade social de levar a petição ao Parlamento", diz a jovem..A petição surgiu depois do regresso de Sara, com o marido, de um ano a viver e a trabalhar em Lyon. Sara é licenciada em Gestão Cultural e o namorado em Som e Imagem - mas, como emigrante, trabalhava nas limpezas. "Quando cheguei a Lyon fez-me muita confusão que os centros comerciais estivessem fechados ao domingo. Foi um choque. Depois, adaptei-me e percebi que fazia todo o sentido, porque as pessoas tinham mais qualidade de vida." De volta a Portugal, nasceu a ideia de tentar alcançar a mesma "qualidade de vida" que tinha em França. Queria muito implementar a ideia de "passar o domingo com a família" em Portugal.."Com o encerramento das grandes superfícies comerciais ao domingo as pessoas seriam confrontadas com um novo desafio: passar tempo de qualidade em família (algo que já acontece noutros países e a que nós chamamos "qualidade de vida")", escreveu em 2014, na petição. E deixava várias perguntas, como esta: "Será que realmente precisamos de ter uma grande superfície comercial aberta todos os dias da semana, das 10.00 às 23.00/00.00?"."Nervosismo" impediu-a de levar a petição ao Parlamento na primeira vez.Na altura, ainda pensou levar a petição à Assembleia da República, mas tinha 26 anos e muito medo de falhar. "Enviei um e-mail para o Parlamento a perguntar como poderia apresentar a petição, mas recebi um e-mail automático com uma resposta formatada e confesso que não percebi nada", conta. Desistiu quando soube que teria de apresentar publicamente a sua ideia. "Ia ficar nervosa. Uma coisa é escrever um texto no computador, outra é falar com as pessoas diretamente." Não foi capaz, pelo menos até agora..Agora, algo mudou. O assunto entrou na agenda dos media. Sara nem sabia que o bispo do Porto tinha defendido mais ou menos a sua ideia no Domingo de Páscoa, mas a contagem das assinaturas a disparar no site da Petição Pública - no qual a petição de Sara é atualmente das mais ativas - surpreendeu-a..O documento conta também com mais de 400 comentários - uns a defender a petição e outros a criticá-la -, mas com muitos comentários de antigos emigrantes que defendem o mesmo. "Se na Alemanha e em França é possível viver com os centros comerciais encerrados ao domingo, por que razão isso não acontece em Portugal?", lê-se.."Estou completamente nervosa em relação a isso, não sei bem o que devo fazer mas sinto que tenho essa responsabilidade social porque 50 mil assinaturas é um número bastante significativo, Já contactei novamente o Parlamento para saber quais são os próximos passos", explica..Sara defende que a medida poderia ajudar "os trabalhadores de grandes superfícies comerciais", uma vez que " traria horários mais equilibrados e a garantia de passarem o domingo em família, ao passo que para os não trabalhadores de grandes superfícies comerciais traria o pretexto ou empurrão perfeito para investir mais em tempo de qualidade em família".."Sim, quero abrir a discussão de novo".Na petição inicial, não pediu o encerramento dos hipermercados ao domingo, agora diz que a medida poderia abranger também estes - ainda que de forma não tão drástica. "Podiam estar abertos algumas horas aos fins de semana, acho que o que se passa atualmente é excessivo.".A jovem, que atualmente trabalha na sua área de estudo, exige, no fundo, "mais tempo para a família". "É uma questão que parece ser um bocado poética e menor, mas a verdade é que nós já passamos a vida a trabalhar e algo que parece pequeno pode fazer toda a diferença na vida das pessoas", resume..Entretanto, já enviou novo e-mail para a Assembleia da República e ainda outro para o programa da RTP Prós e Contras. "Sim, quero abrir a discussão de novo, acho que tenho essa responsabilidade", afirma..Desde que o assunto do trabalho aos domingo voltou a ser discutido, e depois da petição ter sido "redescoberta", Sara Gonçalves diz que tem recebido muitas mensagens de apoio, principalmente de trabalhadores de centros comerciais e hipermercados. "Dizem-me que se a lei mudar isso pode ter um impacto muito grande nas suas vidas", conta a jovem..Um em cada cinco portugueses trabalha ao domingo.Desde 2011 - ano da chegada da troika, mas também o primeiro em que há registos comparativos do trabalho por turnos e aos fins de semana -, e segundo dados do INE, mais 133 mil portugueses começaram a cumprir um horário laboral no dia da semana oficialmente dedicado ao descanso - embora a lei contemple exceções..De acordo com o Instituto Nacional de Estatística (INE), dos quatro milhões e 740 mil trabalhadores em 2011, 968 mil trabalhavam ao domingo em Portugal - 496 mil homens e 472 mil mulheres -, um número que ultrapassou um milhão em 2018 - em quatro milhões e 866 mil trabalhadores, um milhão e cento e um abdicam do dia oficial de descanso semanal: 562 mil são homens e 538 mil são mulheres..O número sobe ainda mais se contabilizarmos os sábados - o dia do fim de semana em que ainda mais portugueses trabalham. Em 2011 eram um milhão e 889 e em 2018 o número ultrapassa já os dois milhões - são dois milhões e 22 mil pessoas a trabalhar ao sábado, aponta o INE..De acordo com o Eurocommerce, a organização europeia que representa o comércio, cada país tem as suas próprias restrições em relação à abertura de lojas ao domingo. A Dinamarca não impõe restrições, mas em feriados, Natal ou Ano Novo as lojas encerram às 15.00; e a Finlândia alterou a lei em 2016 - todas as lojas podem abrir aos domingos, mas não é permitido vender álcool entre as 21.00 e as 09.00..Aos domingos, há comércio encerrado na Alemanha, na Grécia, em França, na Holanda ou na Noruega (todos com algumas exceções)..Em Portugal, a partir de 1 de março de 2015 deixaram de existir restrições à abertura de lojas ao domingo. A abertura de hipermercados ao domingo causou celeuma durante o governo de António Guterres, quando foi permitida a abertura dos hipermercados aos domingos entre as 08.00 e as 13.00. Em outubro de 2010, o então secretário de Estado do Comércio, Fernando Serrasqueiro, avançou com um decreto-lei que permitiu a abertura de lojas com mais de dois mil metros quadrados de dimensão durante todo o dia.