Sandra Bullock é uma das atuais atrizes de Hollywood que, embora com resultados irregulares, tem sabido gerir a sua carreira sem ficar "prisioneira" de um determinado modelo de personagem - o que, convenhamos, poderia ter acontecido com as duas comédias em que assumiu a caricatura de Miss Detective (2000, 2005). Não admira, por isso, que a encontremos agora em Indesculpável (título original: The Unforgivable) na dupla condição de protagonista e produtora, apoiando a estreia da realizadora alemã Nora Fingscheidt nos circuitos americanos..Tendo em conta que este é um filme da Netflix, não deixa de ser curioso, e também algo desconcertante, que a sua concepção corresponda a uma matriz clássica dos estúdios de Hollywood. Estamos, de facto, perante aquilo que a gíria industrial designa como um "veículo" para a sua intérprete principal. Entenda-se: um filme centrado numa personagem que, por assim dizer, assume todas as despesas dramáticas da história que nos é contada, nessa medida favorecendo (ou podendo favorecer) uma composição de particular intensidade..Indesculpável cumpre com sobriedade profissional esse projeto, até porque Ruth Slater, a personagem de Bullock, possui, de facto, um misto de realismo e mistério que a torna (ou podia tornar) "maior que a vida". Começamos por conhecê-la a sair da prisão depois de ter cumprido uma pena de 20 anos. Sem pai nem mãe, Ruth tomava conta da irmã de cinco anos quando teve de enfrentar uma ordem de despejo - no momento em que as forças policiais da região de Seattle tentaram fazer cumprir essa ordem, Ruth matou o xerife que comandava a respetiva patrulha; ao sair da prisão, ainda que desafiando os dispositivos legais, Ruth quer saber da irmã....O filme revela claros problemas na articulação das duas "vias" principais da sua narrativa. Assim, por um lado, a nova vida de Ruth, acumulando dois empregos (um numa fábrica de tratamento de peixe, outro num atelier de carpintaria, arte que aprendeu na prisão), é tratada com uma precisão realista pouco comum na produção americana dos nossos dias, em particular na própria Netflix; por outro lado, o constante retorno à cena original do drama (a morte do xerife) decorre de uma montagem tão vistosa nos seus efeitos como simplista na intensidade dramática..Bullock faz o que pode para emprestar emoção e pathos à sua Ruth, mas em boa verdade não pode muito. Porquê? Porque o argumento -¸ baseado na série britânica em três parte Unforgiven, emitida pela ITV em 2009 - confunde a criação de suspense com a banal ocultação de dados ao espectador, esquecendo a velha lição do mestre Hitchcock: o suspense nasce, não do que não sabemos, mas da diferença de saberes entre o espectador e as personagens. É pena porque, além do mais, o esforço de Bullock reflete um significativo investimento na caracterização psicológica das personagens, sendo inevitável destacar também as composições de Vincent D"Onofrio, Jon Bernthal e Viola Davis..dnot@dn.pt