Sal, café, trocas de urina e até duas hoquistas com ADN masculino

Segunda parte do relatório McLaren revela que mais de mil desportistas de 30 modalidades beneficiaram do esquema de dopagem de Estado na Rússia. E detalha as formas de manipulação de resultados
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A investigação levada a cabo pelo advogado canadiano Richard McLaren ao sistema antidoping do desporto russo deparou-se com várias revelações surpreendentes e até chocantes. Entre elas, duas amostras consideradas elucidativas sobre a alegada manipulação de testes levada a cabo pelas autoridades de Moscovo: a urina de duas jogadoras de hóquei no gelo russas que competiram nos Jogos Olímpicos de Inverno de Sochi, em 2014, continha ADN masculino.

Esta é uma das provas que constam da segunda e última parte do relatório McLaren, apresentada ontem e que revela que mais de mil atletas russos de 30 desportos diferentes terão estado envolvidos num esquema de doping institucionalizado na Rússia, entre 2011 e 2015, manipulando resultados em todos os grandes eventos desse período, com destaque para os Jogos Olímpicos e os Paralímpicos de Londres 2012, os Mundiais de atletismo de 2011 e 2013 e os Jogos Olímpicos de inverno de Sochi em 2014.

A investigação conduzida pelo advogado canadiano já tinha produzido uma primeira parte, publicada em julho passado, acusando a Rússia de dopagem de Estado e pedindo então a exclusão dos atletas russos dos Jogos Olímpicos do Rio, em agosto - recomendação que só o atletismo seguiu, enquanto as outras federações internacionais preferiram analisar caso a caso (no total, mais de cem atletas russos acabaram por ser excluídos do Rio 2016).

Agora, a última parte do relatório McLaren, apresentada ontem em Londres, aponta para mais de mil casos de atletas russos beneficiados por esse esquema de manipulação dos resultados antidoping, o qual contava "com a participação do ministro dos Desportos e de serviços como a Agência Russa de Antidopagem [Rusada], o laboratório antidoping de Moscovo e os serviços secretos", acusou McLaren.

As identidades dos atletas, entre eles as duas hoquistas, foram para já mantidas em segredo. Os nomes foram enviados para as respetivas federações internacionais para que estas abram as investigações necessárias. Mas esta segunda parte do relatório McLaren esmiúça ao pormenor várias das práticas levadas a cabo pelas autoridades russas para encobrirem o doping dos atletas.

Além do insólito caso das hoquistas com ADN masculino, os investigadores encontraram outras amostras de urina com sal e café, utilizados para disfarçar as substâncias dopantes - em oito casos, os níveis de sal apresentavam mesmo valores fisiologicamente impossíveis para um ser humano saudável. Outras amostras mostravam diferenças de ADN em relação a amostras anteriores do mesmo atleta. E outras misturavam mesmo diferentes ADN na mesma amostra.

Segundo Richard McLaren, todas estas eram práticas inseridas num esquema "controlado pelo Ministério do Desporto" russo e operado pelo laboratório de Moscovo, onde se prolongou de forma sistemática um esquema de troca e manipulação de amostras de urina pensado para os Jogos de Sochi 2014.

O advogado canadiano não tem dúvidas: "Durante anos, várias competições desportivas internacionais foram sequestradas pelos russos. Treinadores e atletas tiveram de competir de forma desigual e desleal. Adeptos e espectadores foram enganados." McLaren deu o exemplo de Londres 2012, onde os russos conquistaram 21 ouros, 20 pratas e 31 bronzes. "A Rússia corrompeu os Jogos de Londres numa escala sem precedentes e cuja dimensão provavelmente nunca saberemos por inteiro", disse o canadiano, referindo-se ao desaparecimento de provas e até de testemunhas. O relatório aponta, por exemplo, que 15 medalhados de Londres estiveram implicados neste esquema de dopagem (dez deles já foram apanhados entretanto) e que amostras de urina de 12 medalhados de Sochi 2014 foram manipuladas.

Rússia fala em conspiração

"Conspiração internacional" contra Moscovo, assim reagiu a Rússia, com um comunicado do Kremlin garantindo "que não existem programas governamentais para promover a utilização de doping no desporto". Já Yelena Isinbayeva, recordista mundial do salto com vara que agora lidera um novo conselho de supervisão da Agência russa antidopagem, diz que o relatório vai ser discutido na reunião da Rusada no próximo dia 15: "Temos um grande trabalho pela frente para reconstruir a confiança no desporto russo, mas estou muito confiante."

Entretanto, o Comité Olímpico Internacional anunciou que vai reanalisar todas as 254 amostras de urina de atletas russos recolhidas nos Jogos de Sochi 2014.

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