Sabaya: as outras vítimas do Daesh

Um documentário para conhecer uma realidade oculta: <em>Sabaya</em>, de Hogir Hirori, acompanha uma equipa de voluntários que resgata mulheres yazidis sequestradas e feitas escravas sexuais. Estreia-se hoje, em exclusivo, nos canais TVCine.
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Comecemos por esclarecer o título. "Sabaya" pode designar uma mulher cativa ou prisioneira de guerra, mas o verdadeiro significado desta palavra árabe, tal como usada pelo Daesh, é "escrava sexual". Trata-se do nome dado a um grupo muito específico: as mulheres yazidis (minoria étnica curda com a sua própria religião) sequestradas em 2014 pelo Estado Islâmico na província de Sinjar, no Iraque, e obrigadas a converterem-se ao Islão. É sobre elas, e sobre quem arrisca a vida para as libertar, que se debruça o documentário, humanista e não sentimental, do curdo-sueco Hogir Hirori. Um olhar que segue a ação dos benfeitores a partir de dentro, sem recorrer a efeitos dramáticos para além do testemunho direto das missões de resgate, por mais perigosas que se afigurem.

Tanto assim que, no início de Sabaya, e também na sua parte final, a câmara chega mesmo a estar escondida num niqab (o véu, geralmente negro, que cobre o rosto das cativas), dando-nos uma visão meio obstruída pelo tecido. Somos levados por essa lente até ao interior do campo Al-Hol, na Síria, onde se encontram cerca de 73 mil apoiantes do Daesh, entre eles, milhares de mulheres e meninas yazidis traficadas, violadas e torturadas - muitas tendo assistido à morte dos homens da sua família às mãos do Daesh -, tudo isto sob o disfarce social do casamento. É aqui, nesta zona de alto risco, que se concentra grande parte da ação de Sabaya (para ver hoje, 22h00, no TVCine Edition), seguindo-se de perto os atos de coragem dos voluntários de uma organização que resgata e protege algumas yazidis, ao mesmo tempo que, secretamente, devolve ao campo ex-sabayas, infiltradas, verdadeiras heroínas que ajudam a procurar as outras.

Há, de facto, um esforço conjunto que o documentário privilegia no seu ângulo, dando atenção não só ao que se passa nessas situações tensas e thrillescas, mas também ao sabor a "normalidade" doméstica que as raparigas resgatadas vão (re)descobrir no centro de acolhimento, que é a própria casa de um dos voluntários, Mahmud. Pode dizer-se que este homem de meia-idade se impõe como o discreto protagonista da história, passando os dias agarrado ao telemóvel a receber os pedidos de famílias para procurarem as suas filhas em Al-Hol. Vê-lo em permanência a consultar mensagens e em busca de zonas com rede é tão prosaico quanto comovente. Assim como as críticas benignas que a esposa lança quando passa por ele, queixando-se da sua ausência ou devolvendo-lhe um "vai tu buscar" quando este lhe pede um café.

A graça destas pequenas coisas, que passa pela vivência simples e ritmo tranquilo da casa, é aquilo que dá alguma redenção ao sofrimento das jovens traumatizadas aqui recebidas pela mulher de Mahmud, mas também pela mãe dele e o filho pequeno. Numa simbólica cena noturna, essa avó, juntamente com o neto, não resiste a queimar as túnicas pretas com que elas ali chegaram, desta forma expurgando algo do mal que carregavam no corpo. Fá-lo enquanto balbucia, indignada: "Meninas obrigadas a usar estas roupas...".

O carinho de figuras maternas como estas é importante para restabelecer o contacto com o mundo. Estamos a falar de jovens que chegam ainda um pouco em choque e precisam de tempo para perceber que já não se encontram em perigo. A clareza desse estado mental é percetível inclusive nas palavras de uma delas, que só consegue dizer que odeia o mundo e "em breve terão notícias de que se suicidou" - é o que acontece a muitas sabayas. Torna-se, por isso, quase mágico vê-la sorrir ao fim de algumas semanas no abrigo, antes de, na companhia de outras protegidas, ser levada à sua própria família.

Não deixa de ser surpreendente que Hirori nunca ceda à tentação de sublinhar o drama individual de cada rapariga, isto é, criando circunstâncias formais para entrevistas ou para a exibição do sentimento de angústia. Os poucos comentários que ouvimos surgem em contexto de conversas ou numa breve ocasião em que o realizador consegue apanhar uma delas disponível para dar um vislumbre sobre aquilo que atravessou, sem entrar no típico relato de reportagem. Não há cabeças falantes, de todo. A energia vital do documentário está no gesto de Hirori atrás da câmara, no facto de se manter numa linha de contemplação da realidade que assume os mesmos riscos que os protagonistas, como se o que lhe interessasse fosse "ver para crer", e não propriamente escutar testemunhos distantes da febre do momento.

Distinguido no Festival de Sundance com o prémio de melhor realizador, na categoria de documentário, Sabaya habita assim os dois lados de uma operação de amor: o resgate e o reconforto. No primeiro caso, seguindo dentro da carrinha as missões noturnas, envolvidas por perseguições e sons de tiroteio (sentindo a tal febre do momento), no segundo, observando o paraíso modesto da liberdade reencontrada no abrigo, entre imagens balsâmicas da avó a fazer ovos mexidos ou da criança a brincar no pátio.

E por falar em criança, uma das últimas sabayas a chegar ao centro de acolhimento é uma menina de sete anos, sequestrada quando tinha apenas um... Nem mesmo perante este exemplo devastador Hirori recorre ao sensacionalismo: é perceber como o amparo e as pequenas alegrias junto das duas matriarcas da casa transformam a visão daquele ser inocente num índice de esperança.

Uma legenda final informa-nos que 206 sabayas foram salvas por este centro, havendo ainda mais de 2000 desaparecidas. Dados estatísticos que oferecem uma consciência ampla de algo que vemos em processo, sem a resolução rápida desejada mas com um sereno sentido de incumbência.

dnot@dn.pt

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