Sá Carneiro vale mais do que Cavaco Silva?

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Sá Carneiro morreu há 40 anos. O centro-direita português apresenta-o como o melhor político da história da democracia portuguesa.

Sucederam-se as homenagens, os artigos, as reportagens, os debates a sustentar essa tese e, até, o Presidente da República, homem do mesmo partido, veio caucionar esta ideia e reavivar a polémica sobre a hipótese de um atentado ter sido montado para fazer cair o avião que o matou, com Adelino Amaro da Costa, Snu Abecasis, António Patrício Gouveia e os dois pilotos do Cessna.

Sá Carneiro começou por acreditar na democratização do Estado Novo - um erro de análise política - e foi deputado pela ala liberal na Assembleia Nacional do regime, de onde acabaria, desiludido, por sair.

Sá Carneiro não fundou o PPD da democracia sozinho: fê-lo com Francisco Balsemão e Magalhães Mota, em maio de 1974, e estes dois nomes não podem ser ignorados nessa história.

Foi ministro sem pasta e adjunto do primeiro-ministro do I Governo Provisório durante apenas dois meses.

Liderou o partido intermitentemente, sempre a gerir guerras internas complicadíssimas e sob uma contestação quase permanente.

Nas duas primeiras eleições o PPD teve a medalha mais amarga dessas corridas, a de prata, e foi o segundo partido mais votado. Mário Soares, a liderar o PS e a luta contrarrevolucionária, colheu os frutos da consentida cedência desse protagonismo por Sá Carneiro.

Foi deputado da Assembleia Constituinte (votou a favor da Constituição) e da primeira legislatura da Assembleia da República.

Com a AD, que juntou o PPD/PSD (o nome mudou em outubro de 1976) ao CDS e ao PPM, Sá Carneiro conseguiu, finalmente, duas vitórias eleitorais. Nunca ganhou uma maioria absoluta só com o seu partido.

Foi primeiro-ministro de um governo de coligação durante curtos 11 meses, por causa da tragédia que o vitimou.

Este currículo político, comparado diretamente com o de Cavaco Silva, é bastante mais fraco.

É verdade que, antes do 25 de Abril, Cavaco Silva nada fez politicamente notável. Nos primeiros anos da Revolução também não.

Apareceu como ministro das Finanças de Sá Carneiro, com ar austero e tecnocrata, suficientemente credível para fazer dele um político instantâneo que, quatro anos depois, ganharia a liderança do partido e do governo.

Cavaco conseguiu as duas únicas maiorias absolutas que o PSD obteve sozinho nas urnas.

Em dois períodos distintos, de 10 anos, ele foi o político mais influente de Portugal como primeiro-ministro (de 1985 a 1995) e como Presidente da República (de 2006 a 2016).

Cavaco moldou o país atual à medida das exigências da CEE/União Europeia.

Cavaco conseguiu a entrada de Portugal no clube do euro.

Cavaco teve algumas derrotas políticas amargas para a direita: a ter de dar posse ao governo da "geringonça" e a perda da disputa presidencial em 1996 para Jorge Sampaio foram mesmo bastante duras.

Mas Cavaco conseguiu, em 20 anos de exercício de poder, as vitórias mais importantes da direita portuguesa e é o político dessa zona ideológica que mais diretamente influenciou a vida e a mentalidade dos portugueses, para o mal ou para o bem, conforme o leitor ajuizar a questão.

Sá Carneiro, nem que seja por falta de tempo, não teve essa possibilidade.

Embora a maioria das pessoas de direita (não todas) estimem Cavaco Silva, a verdade é que a paixão que nutrem por Sá Carneiro é nitidamente de outra dimensão.

Basta contar os dirigentes do PSD ou candidatos a dirigentes desse partido, ao longo dos últimos 40 anos, que disseram serem herdeiros dos ideais de Sá Carneiro com os que se afirmaram devotos da prática de Cavaco Silva.

Não quero ser injusto, mas, se descontar Manuela Ferreira Leite, tenho a impressão que nenhuma personalidade importante do PSD se afirmou verdadeiramente como discípula do professor de economia.

Quanto a supostos pupilos de Sá Carneiro... bem, são tantos que até parece ser essa condição uma credencial obrigatória para circular no território social-democrata.

Qual é a explicação para isto?

Há uma carga emocional associada às circunstâncias da morte de Sá Carneiro que pode explicar tal distorção de juízo e a mitificação da figura, mas isso não é suficiente para cobrir todos os ângulos do problema: estamos a falar de política e, portanto, estamos a falar de organização que alimenta tal mito, reescreve a história, encontra novos ângulos de análise, motiva reportagens, organiza debates, publica livros, inspira apontamentos televisivos.

Esta máquina, informal, mas motivada, de propaganda a Sá Carneiro funciona há 40 anos. Isto é racional.

A pergunta a fazer, portanto, é esta: porque é que a direita portuguesa que defende a democracia liberal precisa de ter Sá Carneiro como figura preponderante da sua história, como líder ideológico, como modelo político?

Vou tentar uma explicação simples, normalmente as mais certeiras: porque a esquerda comunista teve nos primeiros anos da democracia um líder excecional, Álvaro Cunhal e a esquerda não comunista teve outro líder excecional, Mário Soares.

A direita, nos anos imediatos a 1974, tinha Sá Carneiro no PPD e Freitas do Amaral no CDS.

Freitas (que até me pareceu ser objetivamente mais corajoso do que Sá Carneiro por dirigir o único partido que, contra os ventos da época, recusou sempre assinar um projeto com a palavra "socialista" para o país) nunca conseguiu apaixonar a direita portuguesa e, décadas mais tarde, arruinou mesmo a reputação nessas hostes ao aparecer como ministro num governo do socialista José Sócrates - Paulo Portas até aceitou que se retirasse o retrato de Freitas do Amaral da galeria de dirigentes exposta na sede nacional do CDS.

Para ser o líder da fundação da democracia portuguesa só sobrou, portanto, à direita não autoritária, a figura de Sá Carneiro. E se a direita que se diz democrática não tivesse uma figura que pudesse apontar como preponderante na formação do regime democrático - estando, ao mesmo tempo, na luta contra o processo revolucionário - estaria a desligar-se da construção dessa democracia e a consentir a perenidade da associação desse espectro ideológico ao Estado Novo, o que reduziria substancialmente a sua influência política e eleitoral.

Cavaco, para essa história, nada contou - e, ainda por cima, aparentava desprezo pelo 25 de Abril.

Sá Carneiro é amado como ninguém pelo centro-direita em Portugal porque a sua morte trágica emocionou o país e porque uma boa parte da direita portuguesa precisa de caucionar historicamente a sua adesão ao 25 de Abril de 1974.

Isso, com o ressurgimento político da direita autoritária, é bom.

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