Ryusuke Hamaguchi: "Aquilo que não podemos ver, ouvir ou tocar também existe"
Ryusuke Hamaguchi, realizador nipónico de 39 anos, é um ilustre desconhecido no mercado cinematográfico português. O seu mais recente filme, Asako I & II, passou pelo último Festival de Cannes e será exibido em antestreia no próximo Sintra & Lisbon Film Festival (16 a 25 de novembro). Mas o maravilhoso título que agora nos ocupa é outro. Happy Hour: Hora Feliz chega ao Espaço Nimas, em Lisboa, carregando uma graciosa revelação. É um filme que, ao longo das suas três partes (um total de 5 horas e 17 minutos), vai desabrochando como uma flor, ou como uma sinfonia íntima. No princípio, as quatros mulheres captadas pela lente de Hamaguchi são apenas tímidas amigas que parecem estar a ensaiar um contacto com o próprio espectador. Elas participam num workshop em que, entre outras coisas, lhes é ensinado a ouvir as entranhas dos outros, colocando a cabeça sobre o ventre. Quão bonito é este gesto? Vamos descobrir. Entretanto, uma das quatro amigas está em processo de divórcio. O caso é complexo e vai afetar as outras, na medida em que, subtilmente, as leva a refletir sobre as suas realidades domésticas, também estas repletas de tonalidades da vida moderna em conflito com a sociedade patriarcal.
Tudo isto - a conceção de Happy Hour - começou igualmente num workshop. Sob o signo de Cassavetes, um dos seus cineastas de eleição, Hamaguchi lançou-se na aventura de filmar intérpretes não profissionais, alcançando uma obra que é um hino ao conceito de tempo: chegados ao final do filme compreende-se, em absoluto, a importância do "estar" com aquelas personagens. Elas vão crescer emocionalmente e nós acompanhamos esse crescimento, saindo da experiência temporal com uma densa e gentil melancolia. Estas e outras impressões partilhámo-las com o realizador, que aceitou responder às perguntas do DN. Na sua aparente simplicidade, Happy Hour é um filme de majestosa ressonância.
Tenho de começar por lhe perguntar sobre a cena mais longa da primeira "parte" de Happy Hour - a do workshop conduzido pelo artista Ukai [Shuhei Shibata]. Li algures que o próprio filme resultou de um workshop. Há alguma relação simbólica com essa cena?
A relação é direta, sim, porque o workshop de representação improvisada que está na base de Happy Hour foi filmado no mesmo local do workshop do filme, em Kobe. E, precisamente, nós não queríamos que os participantes tivessem experiência de representação. O objetivo não era melhorar uma técnica, mas ser um bom ouvinte. Então isto consistia em fazer entrevistas a pessoas nas quais os participantes estivessem interessados, e se essas pessoas fossem famosas, convidávamo-las para fazer palestras. Noutras ocasiões os participantes entrevistavam-se uns aos outros, às vezes com linguagem corporal, como no filme, sob a direção de um coreógrafo e dançarino. Por aqui se percebe que era um workshop diferente, e nesse sentido, tal como sugeriu na sua pergunta, foi uma espécie de modelo para o que vemos no filme.
Indo mesmo a esse momento, no workshop as personagens fazem um exercício muito interessante: encostar a cabeça ao ventre de outra pessoa e escutar-lhe as entranhas. Acho esta ideia muito luminosa no filme, porque me parece que é metaforicamente isso - escutar as entranhas das personagens - que a sua câmara faz o tempo todo...
Isso é muito importante para mim. As pessoas tendem a concentrar-se demasiado no aspeto visual, e consequentemente a acreditar só no que veem. Mas claro que aquilo que não podemos ver, ouvir ou tocar também existe. Ora as nossas entranhas não estão à vista na vida quotidiana, mas estão sempre a trabalhar. E eu penso que muitas coisas existem sem serem vistas ou percebidas. Não sei exatamente o que lhe chamar, mas é qualquer coisa não necessariamente espiritual. Acho que os meus filmes são basicamente sobre isso, e nesse sentido procuro sempre momentos em que o que não é visto, ou o que é impercetível, aparece - embora possa desaparecer no momento seguinte. Mas capturar essa evanescência é o que me interessa.
Depois de se ver o filme, percebe-se a grande importância da sua duração. Mas gostava de saber se foi algo que já estava planeado para ser assim, ou se aconteceu com o decorrer da rodagem.
Foi um resultado natural do processo de rodagem. A maioria dos atores - os 17 participantes do workshop entram todos no filme - não tinha nenhuma experiência de representação. Então escrevemos o guião com este cuidado de os ajudar a iniciarem-se só com a leitura do mesmo. A princípio, o guião tinha apenas 2 horas e meia de duração, mas recebemos muitos feedbacks dos atores dizendo que não percebiam porque é que as suas personagens faziam isto ou aquilo, e por vezes recusando fazê-lo de determinada maneira. Por isso, reescrevemos e voltámos a reescrever o guião durante um ano, de modo a torná-lo compreensível ou pelo menos credível para os atores. Isso fez-nos chegar a um grosso de 6 horas... Pensei que na fase da edição seria capaz de omitir várias cenas, mas quando me vi perante os materiais ordenados, de acordo com a escrita, a primeira versão ficou com 5 horas e 40 minutos, e senti que tinha alguma força. Chegámos a fazer uma exibição pública, e nessa altura tivemos uma resposta muito boa, quase entusiástica, de vários espectadores. Então assumimos que essa duração tinha o poder de fazer com que o público entendesse os motivos ou emoções das personagens, como o reajuste do guião fez com os atores. Depois de trocar ideias com os produtores, apenas omitimos alguns pontos da cena do workshop e da leitura pública [outra situação-chave do filme, longa, que se passa no mesmo local do workshop], ficando esta loucura de 5 horas e 17 minutos. Continuo a achar que foi a melhor solução.
Há outra cena em Happy Hour, de uma partida de Mahjong, que pela forma como está filmada me fez lembrar a linguagem de Ozu. Por outro lado, a sua sensibilidade, no todo, parece liberta de influências, e o facto de eu ter visto o filme em três partes criou-me a sensação de uma musicalidade narrativa em crescendo. Faz-lhe sentido?
É uma grande honra a comparação com Ozu nessa específica cena do Mahjong, em que procurei uma naturalidade na configuração da câmara apontada de frente ao rosto das atrizes, e percebo que suscite essa semelhança. Mas no geral os meus filmes são diferentes dos dele. Talvez porque tenha uma mais particular admiração pelo cinema de John Cassavetes, que tem muito que ver com uma ideia de "imitar a vida", quase como se fosse tudo uma improvisação - apesar de não o ser, de todo... Ainda sobre Ozu, há nos seus filmes uma espécie de música que vem das conversas rítmicas e dos movimentos muito coreografados, e fico feliz que Happy Hour também transmita esse sentimento musical, mas este não foi minha intenção. É algo que surge da sensibilidade do espectador.
Era importante para si fazer um filme centrado em mulheres?
Não faço especialmente filmes sobre mulheres; às vezes faço filmes sobre homens. Mas para fazer um filme sobre alguma forma de "resistência", teria de lidar com os problemas das mulheres, porque elas são, aberta e secretamente, oprimidas na sociedade japonesa. E eu só cheguei a esse reconhecimento através do processo de filmagem de Happy Hour, ouvindo-as.
As personagens secundárias são também essenciais para a orgânica da história. Podemos dizer que há um efeito de coro no filme?
Sim, no sentido em que comunicámos com as personagens secundárias da mesma maneira que o fizemos com as quatro protagonistas. Por vezes também escrevemos histórias para elas, em jeito de informação extra, para que os atores se inteirassem das razões e emoções das suas personagens. E essas histórias de bastidores tornaram-se tão densas quanto o próprio argumento. Diria que não lidei com elas como um coro, porque cada uma tem a sua vida significante, mas que o resultado final é esse.
Aqui vemos também um Japão contemporâneo onde a vida moderna entra em conflito com uma mentalidade tradicional. É algo ainda muito característico da sua sociedade?
Ainda é assim no Japão, precisamente. Sinto que o recuo conservador em relação ao patriarcalismo está a ficar mais forte por causa do declínio económico e da perda de confiança na sociedade nestes últimos 25 anos, sobretudo depois do desastre [tsunami] de 2011. Vejo essa tendência mais em pequenas localidades do que nas cidades. Quando entrei na universidade estive em Tóquio durante 15 anos, e depois do tsunami mudei-me para a região nordeste do Japão. Aí fiquei surpreendido por ainda existir um sentimento patriarcal muito entranhado. E às vezes as mulheres são muito recetivas a isso, o que torna a situação bastante mais difícil para o outro tipo de mulheres, que querem a sua independência.
Porquê o título "Happy Hour"?
Para dizer "sim" a todos os tipos de tempo neste filme, porque é disso que ele é feito. O fluxo de algumas partes pode parecer arrastado, mas na edição fiquei convencido de que esse tipo de tempo era importante para o filme. Um dia aconteceu-me ver uma placa em frente a um bar a dizer "Happy Hour", e nesse momento lembrei-me das falas de duas das personagens. Jun diz que o tempo no workshop de Ukai foi um "momento feliz" - para ser exato, este comentário foi uma improvisação da atriz; se fosse uma frase escrita no argumento não teria o mesmo impacto em mim. E Kohei faz o mesmo comentário na cena da leitura pública - mas aí já fui eu a escrevê-lo no argumento. Com este título, é como se abençoasse também os momentos tristes como "felizes". Gosto das nuances das palavras, neste caso porque até soa engraçado. Optar por "Happy Hours" seria intelectualizar o jogo de palavras. Além disso, "Happy Hour" implica um tempo muito curto da nossa vida quotidiana, funcionando aqui ironicamente. E já agora, por uma razão muito mais cândida, escolhi este título porque ele reflete o tempo que nós - atores e equipa - experienciámos durante a rodagem.
***** (Excecional)