Quando Happy Hour - Hora Feliz estreou em Portugal, em 2018, Ryusuke Hamaguchi era um nome praticamente desconhecido por cá. O filme, dada a sua dimensão temporal (mais de cinco horas, divididas em três partes), surgiu como um fenómeno no panorama das salas, correspondendo a um risco de distribuição. Porém, nessa ambiciosa porta de entrada para o cinema de um "novo" realizador japonês não havia nada de intimidante: Happy Hour é tão sereno na sua coreografia de quatro mulheres na teia quotidiana do Japão moderno que a passagem das horas só confirma a sua secreta sinfonia e ressonância íntima. Na entrevista que nos deu na altura, Hamaguchi dizia que "aquilo que não podemos ver, ouvir ou tocar também existe", sublinhando que essa vida interior, ou, se quisermos, as "entranhas" da realidade, é uma demanda deste e de outros filmes seus..Homenageado nesta edição do Lisbon & Sintra Film Festival, Hamaguchi é ainda um cineasta por descobrir, mas cada vez mais amado nos festivais. Na última edição da Berlinale, que decorreu online, o seu filme Roda da Fortuna e da Fantasia foi distinguido com o Urso de Prata, e mais recentemente, no Festival de Cannes, Drive My Car venceu o galardão de Melhor Argumento, para além do Prémio da Crítica e do Júri Ecuménico. Ambos serão exibidos, em antestreia, no ciclo que agora lhe é dedicado (e que inclui o referido Happy Hour)..Roda da Fortuna e da Fantasia reúne três contos à volta de coincidências e de um certo poder para contrariar a deceção da realidade: no primeiro, um imprevisível triângulo amoroso põe à vista o impulso feminino; no segundo, uma manobra de sedução, por meio da leitura de um excerto erótico, não tem o resultado esperado, e no terceiro, um doce engano entre duas mulheres leva a um exercício de libertação emocional. Já Drive My Car, baseado num conto de Murakami, surge ainda mais apurado nesta sabedoria do jogo humano entre as palavras e a realidade dependente dos acasos e decisões. Um filme que começa, justamente, com uma mulher a contar uma história ao marido, assim como quem escreve um argumento, e que avança pela melancolia do homem, um ator e encenador em processo de levar ao palco, em Hiroxima, O Tio Vânia, de Tchékhov. O título Drive My Car refere-se à jovem que o conduz pela cidade e que terá um papel importante, mas é na repetição seca dos ensaios da peça que está a estrutura do cinema de Ryusuke Hamaguchi. A saber, um realizador que acredita no ensaio enquanto suporte máximo da beleza que, no final, emana da interação entre os seus atores/personagens. É aí que a magia acontece..Fã de Cassavetes, Hamaguchi é desde o princípio influenciado pelo realizador e ator americano, como se vê em Passion (2008), que lembra Maridos (1970), uma espécie de suspensão temporal de duas noites a avivar a juventude amorosa, esta registada por uma câmara mais instável do que o costume. Para quem não apanhou Asako I & II (2018), o seu segundo drama urbano a estrear por cá, tem aqui nova oportunidade. E, para além das médias-metragens Like Nothing Happened (2003) e Touching The Skin of Eeriness (2013), que já revelam a componente performativa das longas, The Depths (2010) é outra das valiosas descobertas, história de um conceituado fotógrafo coreano estilo Blow-up, cuja objetiva, acidentalmente, se cruza com o "mistério" de um jovem prostituto. Como sempre, eis os sinais da vida interior..dnot@dn.pt
Quando Happy Hour - Hora Feliz estreou em Portugal, em 2018, Ryusuke Hamaguchi era um nome praticamente desconhecido por cá. O filme, dada a sua dimensão temporal (mais de cinco horas, divididas em três partes), surgiu como um fenómeno no panorama das salas, correspondendo a um risco de distribuição. Porém, nessa ambiciosa porta de entrada para o cinema de um "novo" realizador japonês não havia nada de intimidante: Happy Hour é tão sereno na sua coreografia de quatro mulheres na teia quotidiana do Japão moderno que a passagem das horas só confirma a sua secreta sinfonia e ressonância íntima. Na entrevista que nos deu na altura, Hamaguchi dizia que "aquilo que não podemos ver, ouvir ou tocar também existe", sublinhando que essa vida interior, ou, se quisermos, as "entranhas" da realidade, é uma demanda deste e de outros filmes seus..Homenageado nesta edição do Lisbon & Sintra Film Festival, Hamaguchi é ainda um cineasta por descobrir, mas cada vez mais amado nos festivais. Na última edição da Berlinale, que decorreu online, o seu filme Roda da Fortuna e da Fantasia foi distinguido com o Urso de Prata, e mais recentemente, no Festival de Cannes, Drive My Car venceu o galardão de Melhor Argumento, para além do Prémio da Crítica e do Júri Ecuménico. Ambos serão exibidos, em antestreia, no ciclo que agora lhe é dedicado (e que inclui o referido Happy Hour)..Roda da Fortuna e da Fantasia reúne três contos à volta de coincidências e de um certo poder para contrariar a deceção da realidade: no primeiro, um imprevisível triângulo amoroso põe à vista o impulso feminino; no segundo, uma manobra de sedução, por meio da leitura de um excerto erótico, não tem o resultado esperado, e no terceiro, um doce engano entre duas mulheres leva a um exercício de libertação emocional. Já Drive My Car, baseado num conto de Murakami, surge ainda mais apurado nesta sabedoria do jogo humano entre as palavras e a realidade dependente dos acasos e decisões. Um filme que começa, justamente, com uma mulher a contar uma história ao marido, assim como quem escreve um argumento, e que avança pela melancolia do homem, um ator e encenador em processo de levar ao palco, em Hiroxima, O Tio Vânia, de Tchékhov. O título Drive My Car refere-se à jovem que o conduz pela cidade e que terá um papel importante, mas é na repetição seca dos ensaios da peça que está a estrutura do cinema de Ryusuke Hamaguchi. A saber, um realizador que acredita no ensaio enquanto suporte máximo da beleza que, no final, emana da interação entre os seus atores/personagens. É aí que a magia acontece..Fã de Cassavetes, Hamaguchi é desde o princípio influenciado pelo realizador e ator americano, como se vê em Passion (2008), que lembra Maridos (1970), uma espécie de suspensão temporal de duas noites a avivar a juventude amorosa, esta registada por uma câmara mais instável do que o costume. Para quem não apanhou Asako I & II (2018), o seu segundo drama urbano a estrear por cá, tem aqui nova oportunidade. E, para além das médias-metragens Like Nothing Happened (2003) e Touching The Skin of Eeriness (2013), que já revelam a componente performativa das longas, The Depths (2010) é outra das valiosas descobertas, história de um conceituado fotógrafo coreano estilo Blow-up, cuja objetiva, acidentalmente, se cruza com o "mistério" de um jovem prostituto. Como sempre, eis os sinais da vida interior..dnot@dn.pt