Ruy Castro:"A genialidade e grandeza de Nelson ilibaram-no dos pecados"
Nelson Rodrigues (1912-1980) cresceu nas redações - e aí viveu todo o tipo de emoções. Iniciou-se aos 13 anos, no jornal do pai, A Manhã, depois na Crítica, onde seu irmão Roberto foi assassinado, em 1929; o crime acabou com o pai, que morreu de trombose dois meses depois. Durante o golpe que levou Getúlio Vargas ao poder, em 1930, o jornal foi destruído. Nelson, a mãe e os seus 12 irmãos chegaram a passar fome. A família deu a volta por cima, e fez de tudo um pouco nos jornais, de crónica desportiva a policial, de folhetins a legendagem (criativa) de banda desenhada. Ganhou fama de "tarado" e de "mal- dito" com as peças de teatro em que adultério, incesto ou lesbianismo faziam parte da trama - o que lhe valeu ser censurado pela ditadura brasileira, e, a cada vez que tal acontecia, uma campanha por si movida para a derrubar. Muito antes de se tornar comum, inovou ao ir para palco e integrar o elenco de Perdoa-Me por Me Traíres (1957), ao participar na TV, no primeiro programa de debate sobre futebol, Grande Resenha Facit, ou ainda com entrevistas com uma cabra como adereço (Cabra Vadia). Escreveu os argumentos de três telenovelas e no cinema fizeram 20 filmes a partir dos seus argumentos ou da adaptação de obras suas. O Brasil iria redescobri-lo com a biografia de Ruy Castro.
Este foi o seu segundo livro, e resulta de uma aturada investigação. Como surgiu a ideia de biografar Nelson Rodrigues?
Nasci praticamente lendo Nelson Rodrigues e o acompanhei por toda a minha vida de leitor. Quando ele mudava de jornal ou revista, eu ia atrás. E sempre tive grande curiosidade por sua vida. Quando estava no processo de escrever meu livro Chega de Saudade, em 1990, ocorreu-me que também poderia tentar biografar Nelson. Para isto, já contava com algumas vantagens: eu conhecera Nelson pessoalmente, embora não fosse amigo dele, e, aí, sim, era muito amigo de vários de seus amigos. Propus a ideia a Luiz Schwarcz, da Companhia das Letras, e ele aceitou de imediato. Assim, no dia seguinte em que pinguei o ponto final no livro sobre a bossa-nova, já comecei a mergulhar em Nelson.
Na realidade, o livro retrata não só Nelson Rodrigues, mas também o seu pai, Mário, e o seu irmão Mário Filho. Não se sentiu tentado a alargar a biografia aos Rodrigues e não tanto a Nelson? Ou a escrever outras biografias, sobre cada uma dessas personagens?
Não. Tanto Mário pai quanto Mário Filho, além de seu outro irmão, Roberto, são sem dúvida merecedores de biografias individuais, mas, em 1992, poucos achariam isto. O próprio Nelson Rodrigues ainda era uma interrogação. E só vim a descobrir a enorme importância de sua família no processo de investigação. Os demais Rodrigues estão à espera, até hoje, de quem os encare em função de uma biografia...
Crê que O Anjo Pornográfico se mantém atual? Por exemplo, sinto falta de uma nota a dar conta do destino das suas mulheres, Elza, Lúcia, e de seus filhos. Acaso os filhos de Yolanda (amante com quem teve três filhos) terão conhecido seus meios-irmãos? Alguém do clã Rodrigues prossegue nos jornais?
Se formos atualizar todos os livros, nenhum jamais terá fim. D. Elza morreu neste ano, depois de longa convivência com o Alzheimer. Quanto aos outros que você citou, estão tratados na medida certa em meu livro. E, sim, tanto Sacha Rodrigues quanto Crica Rodrigues, netos de Nelson, estão tentando consolidar belos projetos envolvendo Nelson.
Da sua pesquisa foram tornados público factos sobre Nelson Rodrigues, como por exemplo quando efabulava ao declarar que do teatro só conhecia as peças de revista. Ou que, anos mais tarde, ajudara Hermano Alves, exilado em Argel de um regime que o biografado apoiava. Graças a si Nelson Rodrigues é hoje o que ele detestaria, unânime?
Sim, Nelson acabou se tornando uma espécie de unanimidade nacional... Sua genialidade e sua grandeza o ilibaram dos pecados que pode ter cometido. Mas o que importa é que, hoje, depois de muito esquecido, ele voltou a fazer parte da cultura nacional e nos ajuda a compreender o Brasil e, por que não, o ser humano.
Concorda com a frase que cita de Hermano Alves, de que "o Nelson Rodrigues político é uma caricatura do Nelson Rodrigues real"? As suas convicções anticomunistas, por exemplo, não parecem pose.
O Nelson político era realmente uma exacerbação do Nelson real, no sentido de que, como ardente defensor do indivíduo, ele abominava qualquer tentativa de coletivização - daí, seu anticomunismo. Além disso, Nelson nunca teve boas relações com a esquerda brasileira. Quando as suas peças estavam sendo censuradas e proibidas, nos anos 40 e 50, a esquerda nunca deu um pio em sua defesa. O próprio Alceu Amoroso Lima, católico fanático e, no futuro, um ícone da esquerda, "ficou ao lado da polícia contra ele", segundo escreveu. Nelson dizia que, "entre o indivíduo e a Via Láctea, ficava com o indivíduo". No futebol, era contra até os esquemas de jogo que sufocavam a iniciativa pessoal dos jogadores - para ele, nada substituía o craque, o génio, como Pelé ou Garrincha. Aliás, foi o primeiro a chamar Pelé de "rei".
A fome que passou no início dos anos 1930, na sequência da revolução que de passagem aniquila o jornal do pai, Crítica, terá toldado a sua personalidade? Não tem escrúpulos, por exemplo, em fazer publicidade das suas peças, assinando com os nomes de colegas, ou em pedir emprego a quem estava no poder.
Nelson tinha um grande talento promocional, sabia inventar situações para aparecer. Mas não me consta que tenha pedido dinheiro para montar suas peças, ao contrário dos artistas brasileiros de hoje, que acham que o governo deve dar-lhes dinheiro para montar as suas peças ou rodar os seus filmes.
Partilha com o biografado que as peças de teatro, que tanto escândalo causaram, eram profundamente moralistas e não tanto uma provocação à sociedade da época?
Eram as duas coisas. Eram moralistas e não tinham como não provocar a sociedade. Aliás, Nelson desprezava a encenação de O Rei da Vela, de Oswald de Andrade, pelo Teatro Oficina em 1967, porque a plateia delirava de prazer com os palavrões que José Celso Martinez Corrêa enxertou no texto. Já as peças de Nelson, ao contrário, não tinham nenhum palavrão, mas a plateia se sentia como se estivesse ouvindo 300 palavrões.
É a escrita para teatro o maior legado de Nelson Rodrigues?
Durante muitos anos, só se enxergou o genial teatro de Nelson. Mas sua impressionante passagem pela imprensa foi finalmente descoberta quando saiu O Anjo Pornográfico e quando editámos a coleção de sua obra fora do teatro entre 1992 e 2000. Refiro-me, naturalmente, à coleção da Companhia das Letras, não a uma outra que circula atualmente pelas livrarias do Brasil. Na verdade, fui o primeiro a dizer que o verdadeiro território de Nelson Rodrigues não era o teatro, mas o jornal.
Nelson Rodrigues é um sobrevivente: à tuberculose, à úlcera, à perda de visão, ao coração, no que respeita à sua saúde, e às mortes trágicas que ocorreram na família, do pai aos irmãos, o drama da sua filha Daniela, e a prisão de Nelsinho. Consegue escolher o momento que mais terá marcado Nelson?
Segundo ele próprio, o assassinato de seu irmão Roberto na redação do jornal de seu pai, em dezembro de 1929. Foi isso que deflagrou tudo. Mas cada um dos episódios que citou, em qualquer outra família, seria uma tragédia talvez esmagadora.
Pinga-amor, espírito livre sob uma capa reacionária, Nelson Rodrigues não teve medo de viver até às últimas consequências - um intenso drama ao nível de uma ficção de sua pena. Concorda com esta caracterização?
Sem dúvida!