Revisitando Lisboa a partir de Berlim

O filme <em>Night for Day</em>, de Emily Wardill, propõe-nos uma revisitação profundamente original de cenários lisboetas - é um dos grandes acontecimentos do Forum da Berlinale.
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Os festivais de cinema são também exercícios de revisão dos nossos mapas - os da geografia e, por vezes, os da imaginação. Daí o destaque para a maravilhosa descoberta que é Night for Day, média-metragem (47 minutos) incluída na secção Forum da 71.ª edição do Festival de Berlim.

O filme surgiu num prolongamento do Forum ("Forum expanded"), vocacionado para a amostragem de experiências que desafiam regras e fronteiras: "Uma plataforma aberta a formatos de uma grande variedade de disciplinas", desde as chamadas artes visuais até à música, passando pelo teatro.

Night for Day é, de facto, um objeto híbrido, desde logo pela sua gestação e assinatura. Estamos perante uma coprodução Portugal-Áustria, realizada por Emily Wardill, realizadora nascida no Reino Unido cuja atividade profissional se reparte pela associação cultural Maumaus, em Lisboa, e a Academia de Arte de Malmö, na Suécia. Aliás, antes da sua inclusão na Berlinale, o filme existira como instalação, em setembro de 2020, na galeria Secession, em Viena.

A sedução de um objeto como Night for Day começa na dificuldade de o resumir numa sinopse que corresponda a uma "história". Não porque lhe faltem histórias (e são muitas!), antes porque o seu derradeiro objetivo será mesmo questionar a ancestral atividade narrativa dos humanos: que histórias contamos e, sobretudo, como as contamos?

Há três vozes que vão pontuando os acontecimentos: Isabel do Carmo, recordando os tempos de resistência ao fascismo português, Alexander Bridi e Djelal Osman, astrofísicos de uma startup lisboeta apostados no estudo da relação entre computadores e a perceção das imagens. E é importante sublinhar que são mesmo vozes, já que as imagens nos vão mostrando "outras" coisas, de performances mais ou menos abstratas a uma esplendorosa casa concebida pelo arquiteto António Teixeira Guerra, passando por imagens de algumas referências cinéfilas como o clássico britânico Os Contos de Hoffman (1951), da dupla Michael Powell-Emeric Pressburger.

Tudo isto surge tratado através de uma montagem delicada e subtil, eminentemente musical, em que, certamente não por acaso, se vai insinuando o tema da utopia. Isto porque o desejo utópico (como Isabel do Carmo refere, cada vez mais ausente dos discurso políticos) se cruza com as perspetivas, ora vertiginosas ora inquietantes, abertas pelos novos saberes tecnológicos.

Há no filme de Emily Wardill um misto de reflexão filosófica e linguagem irónica, de algum modo "simbolizado" pelo seu título. Night for Day é o "inverso" da expressão "day for night", consagrada na gíria cinematográfica como designação de um filtro que permite produzir um efeito de noite em imagens registadas à luz do dia. Em várias línguas (incluindo o português e o francês), tal filtro é designado por "noite americana", expressão que serviu de título a um clássico realizado por François Truffaut em 1973, precisamente sobre a rodagem de um filme.

Entretanto, seja qual for o palmarés do certame, pode dizer-se que a secção competitiva de Berlim terá conseguido a proeza de incluir, pelo menos, uma bela revelação. Tem também um título alusivo à luz, Natural Light, e representa a estreia do húngaro Dénes Nagy (n. 1980) na longa-metragem de ficção.

O mínimo que se pode dizer de Natural Light é que se trata de um filme de guerra que excede as matrizes tradicionais do género. Há nele um misto de contemplação e realismo que parece indiciar influências de cineastas como Andrei Tarkovsky ou Terrence Malick - é uma mera hipótese que, em qualquer caso, não diminui as singularidades do olhar de Nagy. Encenando o envolvimento de um grupo de soldados húngaros na invasão da União Soviética (a Hungria, recorde-se, aliou-se à Alemanha de Hitler), Natural Light consegue a proeza de ser um verdadeiro conto moral com a respiração perturbante de uma reportagem de guerra.

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