Resistentes, lutam pela sobrevivência
O fulgor não é o mesmo de outrora, mas são duas das mais belas ruas do Porto, onde ainda subsistem traços das actividades que outrora as fizeram famosas. Na Rua das Flores, considerada a mais tripeira das artérias portuenses, chegaram a existir para cima de vinte ourivesarias e joalharias, mas hoje o DN contou apenas sete sobreviventes. Também a Rua do Almada, uma artéria rectilínea que rasga a cidade ao longo de mais de um quilómetro, acolhe ainda uma vaga sombra do comércio do ferro e das ferragens que aqui teve o seu epicentro. "Ainda há alguns, mas está muito diferente", diz-se.
"Se é permitido a um narrador da cidade entusiasmar-se com uma das ruas e dizer que é a mais bela, então o diremos da Rua das Flores, a rua do ouro e dos ourives", diz o historiador Helder Pacheco no seu Guia do Porto, editado nos anos 80. Foi aqui que, a partir do século XVIII, os negócios dos ourives passaram a constituir a maior atracção. "Aqui era o coração da cidade, o pulsar do Porto estava nesta área", conta ao DN o proprietário da Ourivesaria e Relojoaria Coutinho, uma casa fundada em 1859 e uma das resistentes. "Hoje, está tudo muito diferente..." e longe vão os tempos da prosperidade do negócio.
"Os ourives eram tantos em 1848, desde a Igreja da Misericórdia até à volta da Feira de S. Bento, que raras lojas faziam excepção", tirando mercadorias, lojas de tecidos e louçarias, as outras atracções do comércio local, pode ler- -se ainda na dita obra. Carlos Oliveira, proprietário da Ourivesaria Eduardo Carneiro & Companhia, fundada em 1918, bem se lembra do rebuliço até aos anos 60.
"Isto era um pólo de negócios muito grande, havia a Alfândega lá em baixo, a Bolsa e as companhias de seguros", "agora ainda vamos aguentando, mas com muita dificuldade", conta o comerciante nascido naquele prédio há 80 anos e há 64 a trabalhar. A esperança reside agora nas intervenções da Sociedade de Reabilitação Urbana Porto Vivo, mas "ainda vai demorar uns anos e vai ser muito difícil continuar".
Sensação urbana à data da sua abertura, em 1762, também a Rua do Almada viu fecharem as portas de muitas das lojas de ferragens que ali se estabeleceram e que tornaram os ferrageiros "numa espécie de classe profissional na cidade, onde tiveram grande peso económico e até... político (casos de José Passos e Manuel Francisco da Costa, que no início do século propagandearam e prepararam o advento da República".
Num burgo labiríntico de "ruas acanhadas, irregulares, de travessas e vielas escuras", a longa rua representou um corte com uma visão mais conservadora de cidade. Hoje em dia, são as lojas de inspiração vintage, espaços multidisciplinares ou dedicados ao artesanato urbano e, ainda, uma embaixada lomográfica, que trazem novo fulgor a uma artéria que, apesar da beleza arquitectónica ["uma rua para subir a pé. Devagar, vendo a arquitectura e os seus pormenores"], pena ainda por ver a sua cara lavada.
"Já não sou desse tempo, mas recordo-me de os mais antigos falarem de como isto era muito procurado por gente de todo o lado, hoje ainda há muito quem cá venha à procura disto ou daquilo, mas agora muita gente vai às grandes superfícies especializadas neste tipo de artigos", conta ao DN um funcionário de uma loja de ferramentas, acrescentando que a rua também peca pela falta de estacionamento. "Às vezes há clientes que têm de dar duas ou três voltas e muitas vezes nem assim conseguem estacionar", lamenta.
Apesar de se ressentirem das vendas e muitos estabelecimentos terem fechado portas ao longo dos anos, há quem diga que o segredo está na qualidade dos produtos que aqui se encontram. "Muita gente vai agora aos chineses, mas as pessoas sabem que quando aqui compram, elas não se destroem à primeira ou segunda utilização. Por isso, ainda nos vamos safando", diz outro empresário.