República francesa em marcha atribulada

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Fosse o sistema eleitoral francês proporcional e, depois dos resultados da primeira volta das presidenciais, a 10 de abril, já haveria possibilidade de imaginar um pouco a Assembleia Nacional que sairá das legislativas de junho: três grandes grupos parlamentares de tamanho semelhante, um deles, centrista a pender para a direita, em torno do presidente reeleito Emmanuel Macron, outro de extrema-direita, em volta de Marine Le Pen, e um outro ainda, de extrema-esquerda, com Jean-Luc Mélenchon como líder. Afinal se nesta segunda volta, a 24 de abril, muitos eleitores foram obrigados a votar no que acharam ser o menos mau dos dois finalistas, dando uns enganadores 58% ao presidente e 42% à sua rival, na primeira Macron obteve 28%, Le Pen 23% e Mélenchon 22%, o que corresponde mais a verdadeiras preferências.

Contudo, o sistema maioritário a duas voltas, que exige alianças e desistências cruzadas, é hoje uma autêntica caixa de surpresas quando se elege a câmara baixa do Parlamento. Só para dar uma ideia, em 2017, Macron conseguiu do nada criar um partido liberal, o República em Marcha, que junto com os aliados obteve nas legislativas mais de 300 dos 577 assentos. Ele que tinha obtido 24% na primeira volta das presidenciais e 66% na segunda volta. Mas a Frente Nacional de Marine Le Pen, candidata que na primeira volta tinha obtido mais de 20% e na segunda volta mais de 30%, nem uma dezena de deputados elegeu. A direita clássica, representada pelos Republicanos, conseguiu mais de cem deputados, o Partido Socialista, em choque depois da não-recandidatura do então presidente François Hollande, ficou bem abaixo, com uns 30.

Não é totalmente certo, pois, que Macron vá ter um governo da sua cor política a partir do próximo verão. E, sabendo o potencial de conflito que a Constituição Francesa implica na relação entre presidente e primeiro-ministro de partidos diferentes, adivinha-se que qualquer coabitação seria difícil. A olhar para os resultados das presidenciais, um bloco de extrema-esquerda liderado por Mélenchon com inclusão dos ecologistas e dos comunistas até pode ambicionar sair vencedor, desde que as atuais negociações resultem bem, o que gera muitas dúvidas. Mélenchon tem falado de cima, por causa da força da sua França Insubmissa, e isso pode ser contraproducente, e na verdade muitos ecologistas não se reconhecem no tom duro do político. Também deixar de fora os socialistas, por causa de estarem demasiado comprometidos com o sistema, vai ser danoso, pois estes mantêm alguns bastiões.

À direita, Éric Zemmour, candidato extremista que obteve 7% na primeira volta das presidenciais, quer uma aliança do seu Reconquista com a Reunião Nacional, o novo nome da velhinha Frente Nacional, rebatismo que faz parte do esforço de normalização de Marine Le Pen desde que sucedeu ao pai, Jean-Marie Le Pen. Pode ser vital para Zemmour e Le Pen esta parceria, mas há um fosso pessoal entre ambos que não a facilita. Mas importante mesmo para a Reunião Nacional seria beneficiar de algumas deserções nos Republicanos, ainda em choque com os 5% de Valérie Pécresse na primeira volta presidencial (mesmo assim bem acima dos 2% da socialista Anne Hidalgo). Mas os Republicanos têm trunfos, algumas dezenas de deputados com forte implantação local, e a haver deserções é para o macronismo - e o antigo presidente Nicolas Sarkozy deu o sinal.

Confuso? Sim. Subida gradual da extrema-direita, consolidação da extrema-esquerda, derrocada dos partidos de centro-direita e centro esquerda. Só o macronismo permite disfarçar a crise profunda na V República fundada pelo general De Gaulle. E provavelmente vai ser o partido macronista, numa versão mais à direita do que em 2017, a vencer em junho, mesmo que na nova Assembleia Nacional os dois extremos venham a estar muito mais representados.

Diretor adjunto do Diário de Notícias

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