Larysa Yurchenko está a projetar-se naqueles que veio cá buscar - a palavra é resgate, liberdade ou salvação - e anseia por eles enquanto não consegue deixar de pensar na sua própria família, que continua na Ucrânia..A tradutora da Missão Humanitária Sorrisos de Esperança, que saiu da Maia na sexta e regressa sete dias depois num autocarro com 53 exilados retirados à guerra, tem o pai, a mãe e o irmão ainda em Burshtin, perto de Ivano-Franskiv, que é em cima de Chernobyl, Ucrânia natal..Ela só quer falar brevemente: a mãe Olga e o pai Mikail estão doentes, e não querem sair, e o irmão Dimitrov tem 37 anos e está mobilizado para combater a invasão bárbara, como todos os homens do seu país em estado marcial. "Não vêm, não querem vir, são assim, ficam lá uns pelos outros e eu tenho muito medo por eles", diz Larysa. Estes dias, ela caminha em lume brando pelas estações de serviço e auto-estradas europeias fora, fuma cigarros ansiosos e à medida que nos aproximávamos da Polónia - ponto de extração: Korczowa, amanhã, junto à fronteira ucraniana -, os cigarros são cada vez mais afiados, parecem pequeninos punhais a incandescer..São 26 mulheres, 24 crianças e três homens os 53 ucranianos que a Câmara da Maia, onde moram 243 famílias ucranianas, vai levar para junto dos seus..Pedro Teixeira, o grande e florescente coordenador municipal da Proteção Civil da Maia, também condutor incansável na Missão, acaba de atestar o depósito da carrinha com gasóleo a 2,55 euros o litro, é o preço atual alemão, diz que são as crianças aquilo que o preocupa mais. "Porque são crianças e porque viram a guerra, porque viveram a guerra". As suas emoções ficam coaguladas, não quer crer: "Nenhuma a criança - ninguém! - devia ser sujeito a isto! Os adultos sempre têm mecanismos de defesa, mas as crianças não, e inquieta-me muito o silêncio fundo das crianças que temos visto nesta guerra pela televisão", continua o protetor coordenador que é pai de duas meninas..Hoje é o 19.º dia da guerra. Quando atravessávamos a Alemanha, algures numa estação de serviço perdida numa floresta negra, Mário Nuno Neves, vereador e chefe da Missão, fez uma descoberta insólita: posta em cima de um caixote do lixo, a repousar impecável e absurda ao sol, encontrou uma bíblia de capa preta em língua russa. Achou que era um bom sinal e guardou-a. Mas o sinal é dúbio, refletirá depois: foi alguém, algum russo, que acabou de descrer na cegueira cética da guerra de Putin e abandonou a fé? Ou, pelo contrário, foi alguém que quis converter outrem, não importa quem, que a pudesse encontrar?.Na Rússia a sombra continua no poder e nós trememos devido ao seu desejo obsceno. E continuamos todos dentro da asa negra da morte que esvoaça e sai toda da cabeça de um homem com o cérebro seco, infecundo e mau..gaspar@jn.pt