Renoir e os prazeres da Belle Époque

Está aí a última parte do ciclo de cinema francês que decorre no Nimas, e já chegou ao Teatro Campo Alegre. Oportunidade para ver Veneno, de Sacha Guitry, A Filha do Poceiro, de Marcel Pagnol, ou O Prazer, de Max Ophüls. Por aqui, destacamos o título de Jean Renoir: French Cancan
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Quando Jean Renoir regressou a França, em 1953, depois do interregno de quinze anos entre Hollywood, uma rodagem na Índia e outra em Itália, o seu maior desejo do momento era realizar um filme que granjeasse um genuíno reencontro com o público francês, e lhe devolvesse o seu afeto. Respondendo diretamente à intenção, o filme que retomou esse diálogo intrínseco foi a comédia musical French Cancan (1955), que por todas as razões e mais algumas se revelou - e roubamos as palavras a Jacques Rivette, que na altura foi assistente de Renoir - "o hino mais triunfante que o cinema alguma vez dedicou à sua alma, o movimento, que cria as linhas, ao deslocá-las." Há muita paixão nesta frase, e tem toda a razão de ser.

Com efeito, French Cancan, que agora pode ser redescoberto no grande ecrã do Espaço Nimas, no âmbito do ciclo "Os Grandes Mestres 1930-1960", é o princípio da fase final da carreira do cineasta, que ficou marcada por uma explosão de sensualidade, em parte derivada da paleta de cores (Technicolor) que então aproximou ainda mais o seu cinema da pintura do pai, Pierre-Auguste Renoir. E o movimento de que falava Rivette não se refere apenas à impressionante e famosa última cena do filme - que é uma autêntica apoteose de ritmo, cor e exuberância traduzida na dança do cancan -, mas ao próprio "ensaio" de vida que se liberta em cada plano. Veja-se a jovem Nini (formosa Françoise Arnoul), que vai deixar de ser lavadeira para treinar o cancan; a ciumenta Lola (María Félix), que vai aprender a domar a tempestade que há dentro de si; o ainda mais ciumento Paulo, o padeiro, que perceberá que o oponente do amor é o prazer do mundo artístico; ou o príncipe Alexandre, de igual modo refém do amor, que abdicará deste em troca da memória fabricada de um romance parisiense... Quanto a Danglard (Jean Gabin), o grande responsável por este carrossel, já não tem nada a mudar e só se congratula com o espetáculo.

French Cancan assinalou também este reencontro com Gabin, o ator-ícone que outrora se afirmara como um dos rostos fundamentais da cinematografia de Renoir (Les bas-fonds, A Grande Ilusão, A Fera Humana). Ele é, por isso, parte da conversação reiniciada entre o mestre e o público francês. E aqui assume a personagem do empresário fundador do Moulin Rouge: é precisamente a história da origem desse cabaret, símbolo máximo da vivência boémia, que nos é contada. Uma história do mundo do espetáculo, que procura explorar todo o "artifício" (a palavra é do próprio Renoir) ligado à memória da Belle Époque, a que o realizador tanto quis prestar homenagem, sem nunca abandonar o jeito para a boa sátira social. A ela, à Belle Époque, regressaria ainda no seu derradeiro título, realizado para a televisão, Le petit théatre de Jean Renoir (1970).

Por agora, a questão que interessa é mesmo esta: como resistir à fúria visual de um filme que oscila entre a dança festiva e a algazarra castiça de mulheres com mulheres e homens com homens? Mais uma vez, é o movimento incessante do desejo humano, na sua expressão mais viva, que Renoir quer devolver ao espectador, extasiando-o com as calcinhas e folhos brancos das dançarinas, mas igualmente com a nostalgia romântica de uma era. E nem Edith Piaf escapa a esta deliciosa celebração.

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