Relógios parados junto ao Reno
Em fevereiro de 2012, numa crónica do DN, apelei para que a chanceler Merkel sincronizasse o seu relógio pela hora da angustiante crise europeia. Nessa altura, a Alemanha poderia ter sido tudo o que quisesse, em prosperidade económica e sobretudo em prestígio cultural e influência política, desde que o seu governo fosse capaz de correr um risco calculado pelo futuro da Europa. Angela Merkel poderia ter dado o seu nome ao "federador europeu", de que fala Jean Monnet nas suas Memórias, embora pensando não numa pessoa, mas numa espécie de racionalidade à beira do abismo. Em vez disso, a chanceler adotou o seu estilo de intervenção preferido, esperar que a realidade se desdobre, agindo no último momento, apenas para impedir o descalabro, não para atacar a raiz dos problemas (o nome da chanceler já entrou na gíria da juventude alemã, para designar um comportamento de procrastinação).
Esta espécie de "Inverno dos Povos", a captura de múltiplos descontentamentos pela demagogia populista, pela sua miragem mágica de renacionalização a todo o galope, só foi possível pela ascensão de uma atmosfera no debate público designada por muitos como de "pós-verdade". Em política, o que conta é a frágil verdade factual. É essa que o populismo tem desfigurado e mutilado. Contudo, antes de os factos terem sido pisados por Trump e seus émulos, a verdade já havia sido esquecida. Se houve um país europeu que percebeu os riscos do euro, foi a Alemanha. A sua elite académica explicou, em manifestos publicados em 1992 e em 1998, que o euro precisava de uma união política e orçamental, sem a qual os países menos competitivos seriam arrastados para a recessão permanente. Em vez disso, a Alemanha liderou a ficção do Pacto de Estabilidade e Crescimento (1997), que foi reforçada de modo fundamentalista com a entrada em vigor do Tratado Orçamental em 2013. Gerhard Schröder instalou a Alemanha dentro da zona euro num espírito de competição, baixando os salários, mantendo a inflação muito abaixo de 2%. Quando chegou a crise, Merkel esqueceu a teoria e a prática de solidariedade inevitável nas uniões monetárias, transformando a austeridade na doutrina europeia incontestável da Europa. É verdade que Berlim beneficiou no curto prazo: a fuga de depósitos da periferia para a sua banca; dívida pública a juros negativos; crédito barato, também para as suas empresas; conta-corrente externa muito acima dos 6%, violando, sem castigo, as regras europeias; exportações agilizadas por um euro mais fraco... Merkel foi uma competente líder alemã, mas apenas no curto prazo. No longo prazo, o interesse nacional alemão só poderia ser servido numa lógica de reformas estruturais da zona euro. Não só a crise do euro ficou a marinar, como uma avalanche de outras se lhe somaram.
Merkel parte para a luta em 2017. Não para conquistar alguma coisa, mas pelo dever de não abandonar o leme do navio alemão, já fustigado por vagas crescentes. Mais do que nunca será fiel à sua maiúscula prudência, depois do custo imenso do seu voluntarismo filantrópico com os refugiados, em 2015. Parte sozinha, dentro e fora da Alemanha. A direita francesa, que hoje é tudo devido ao hara-kiri socialista com Hollande, irá escolher entre Fillon e Juppé para enfrentar Marine Le Pen. O eixo franco-alemão já nem como mito sobrevive. Juppé confessou-o: "A França falhou o seu histórico papel europeu. Ela comenta, ela critica e, finalmente, ela segue e ela sofre." Hoje já não parece possível sincronizar relógios numa Europa onde a iniciativa política foi entregue aos seus inimigos.