Relato exaustivo da clandestinidade explosiva de Isabel do Carmo

Radiografia dos anos turbulentos de conflito armado fazia falta, pois é um conjunto de factos quase apagados da nossa história.
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A memória de Isabel do Carmo em livro, com uma extensão superior a setecentas página, era um momento há muito aguardado. Por várias razões. A primeira por ter estado profundamente envolvida na luta armada na primeira pessoa; a segunda, por ser uma recordação séria e, por último, por ser uma mulher e essa perspetiva - quer queiram quer não - tem a sua importância. Tanto assim que no início do livro refere a necessidade de os filhos lhe fazerem "perguntas acutilantes" sobre o cenário deste volume e confessa que esse facto a levou a "refletir sobre o que em nós existia como sementes - sementes, uma palavra que aparece amiúde - dos erros que fizeram degenerar em histórias dramáticas os sonhos coletivos", mesmo que o ponto de vista feminino não seja uma premissa fundamental para uma investigação destas.

O livro Luta Armada começa com esta frase: "Pertenci a uma organização amada", uma afirmação que talvez nem a maioria dos leitores perceba na exata medida o que estas palavras significam e, no meio de tanto terrorismo noticiado nos tempos que correm, nem sintam curiosidade em saber o que aconteceu em Portugal, principalmente antes do 25 de Abril. E não termina a introdução sem colocar uma das principais questões: "Porque lutámos?", para a qual tenta encontrar respostas através das suas memórias e de um amplo conjunto de meios numa tentativa conseguida de explicar o título do livro.

Os primeiros capítulos são uma hipótese de historiar a violência desde o início da história da humanidade. Não será por acaso que das histórias mais antigas passa para os séculos mais perto e pega em Dostoievski para logo se chegar à Revolução de Abril e ao PCP, às massas e à ação do partido, não sem deixar de colocar à página 60 uma das grandes questões dessa prática política: os fins justificam os meios?

Feita a pergunta principal, a autora inclui três entrevistas a revolucionários da luta armada - Camilo Mortágua, Carlos Antunes e Raimundo Narciso - e uma a si feita pelos próprios filhos. É o momento em que se ouvem as vozes de quem pegou em armas e se compreendem os motivos para o terem feito. Depois, à página 311, chega o depoimento próprio em quase 40 páginas que nos dá o grande retrato dos porquês sobre a sedução da luta armada, que são constantemente questionados em outras vozes ao longo do volume, mas aqui num relato na primeira pessoa que é fundamental para se perceber um argumento cujo fim conhecemos.

É pena que este livro não se intitule A Minha Luta Armada, pois o leitor português precisa que lhe ensinem além da história oficial e a luta amada não pode ser eclipsada dessa perceção. Isabel do Carmo não se distancia totalmente dessa sua presença ao rebobinar a história desta prática em várias partes do mundo e nos seus casos mais famosos, a FRAP espanhola, o Maio de 68 a par de rebeldes, autónomos, com humor e metralha em França, bem como Sartre, as Brigadas Vermelhas em Itália e os anos Baader-Meinhof na Alemanha, mesmo que chegue posteriormente a conclusões como a de um inevitável "o sistema mantém-se e reforça-se", nem deixe de fazer um ótimo voo sobre o Partido Comunista em Portugal e o seu distanciamento da luta armada como motor da transformação, apesar do seu braço armado, a ARA, a par dos equívocos que o movimento comunista internacional vive ao confrontar-se com os saltos da ideologia chinesa e a crítica a revisionismos soviéticos. Um livro fundamental e muito oportuno.

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