"Quando estas pessoas já não precisarem de nós, vai ser muito difícil lidar com elas." A frase é do antigo secretário de Estado norte-americano Henry Kissinger, proferida anos após ter feito, em 1971, uma viagem secreta à China - fingiu uma doença durante um jantar oficial em Karachi, no Paquistão, e foi levado para recuperar longe da cidade (e dos jornalistas que o acompanhavam). Essa viagem, durante a qual se encontrou com o primeiro-ministro chinês Zhou Enlai, serviu para derrubar os últimos obstáculos à visita histórica do presidente Richard Nixon, em fevereiro de 1972. Meio século depois de este ter apertado a mão ao fundador da República Popular da China, Mao Tsé-Tung, num gesto que culminaria no restabelecimento das relações, os laços entre as duas potências estão no seu ponto mais baixo, tornando proféticas aquelas palavras de Kissinger.."Aqui estamos nós, 50 anos depois, numa situação na qual a necessidade para cooperação não diminuiu", disse Kissinger no ano passado, citado pelo jornal chinês Global Times, por ocasião do aniversário daquela sua visita secreta. "O conflito entre os EUA e a China vai dividir o mundo inteiro e qualquer tentativa de alinhar as nações de um lado ou de outro vai criar divisões e tentações e pressões que serão cada vez mais difíceis de resolver", avisou..Há 50 anos, aproveitando as tensões entre a URSS e a China, "a semana que mudou o mundo" (nas palavras de Nixon) serviu para reforçar a divisão entre os dois gigantes comunistas. Atualmente, à beira de uma nova Guerra Fria, Pequim e Moscovo dão mostras de amizade renovada, com o presidente Xi Jinping a receber o homólogo russo, Vladimir Putin, por ocasião dos Jogos Olímpicos de Inverno em Pequim, com os olhos postos no inimigo comum: os EUA..A 15 de julho de 1971, menos de uma semana depois da visita secreta de Kissinger, Nixon anunciava de surpresa na televisão que tinha aceitado o convite para ser o primeiro presidente norte-americano a ir à República Popular da China, mais de 20 anos depois de os comunistas terem assumido o poder. Falou na "convicção profunda" de que todos iriam ganhar com uma "redução das tensões"..Não é por acaso que a abertura veio de um presidente republicano de linha dura, um falcão. "Só um falcão poderia abrir à China comunista sem ser acusado de fraco", explicou ao DN Tiago Moreira de Sá, professor associado na Universidade Nova de Lisboa e investigador no Instituto Português de Relações Internacionais (IPRI)..A visita começou a 21 de fevereiro de 1972 e durou oito dias, cheia de gestos e imagens históricas - desde o primeiro aperto de mão ao chefe do governo chinês à saída do Air Force One até ao encontro com Mao e a visita à Grande Muralha da China. A primeira-dama Pat Nixon foi ao jardim zoológico ver os pandas, que acabariam depois por ser emprestados aos EUA - naquele que foi o início da chamada "diplomacia dos pandas" que dura até hoje (apesar de o Congresso norte-americano querer travar o empréstimo destes animais).."Foi provavelmente o maior desenvolvimento geopolítico de toda a Guerra Fria, estando na origem daquilo que veio a ser a détente entre os EUA e a União Soviética. Foi a abertura dos EUA à China que levou a URSS a ter uma vontade muito maior de se entender com os EUA, para não ter que enfrentar ao mesmo tempo dois adversários temíveis", lembrou Moreira de Sá. "A partir daí, os EUA passam a estar mais próximo das duas grandes nações comunistas do que elas estão entre si. Os EUA usam a carta chinesa para forçar a URSS a entendimentos, como no campo do desarmamento nuclear. E quando queriam entender-se com a China usavam a carta soviética e isso também deu resultados concretos, um deles por exemplo o fim da guerra do Vietname. A paz honrosa em 1973 é possível neste contexto"..Do lado chinês, apesar de a abertura económica de Deng Xiaoping ainda estar a uns anos de distância, já haveria forças a remar nesse sentido e interessava passar a ter os EUA na coluna dos aliados e dos parceiros económicos e comerciais. Uma jogada que, alguns alegam, acabaria por correr mal para Washington, sendo esperado que a China ultrapasse os EUA como maior economia mundial em 2030..Cinquenta anos depois da visita de Nixon, a relação está no seu ponto mais baixo, marcada pela guerra comercial ainda na presidência de Donald Trump e pela declaração, da parte de Joe Biden, de que a China é o maior desafio à liderança global dos EUA no século XXI. Do lado chinês, Xi Jinping tem vindo a reforçar a sua posição, preparando-se este ano para ser eleito para um terceiro mandato. A questão de Taiwan (que já existia há meio século),os ataques à democracia em Hong Kong ou as acusações de genocídio contra os uigures acentuam a divisão atual.."Agora a China é o equivalente à União Soviética da Guerra Fria ou pior, porque a URSS nunca teve a economia que a China tem nem teve a população que a China tem, cerca de 1,3 mil milhões de pessoas. É um adversário muito mais temível do que era a URSS. Neste momento, há algumas escolas de opinião dos EUA que querem fazer uma espécie de Nixon invertido, abrir à Rússia contra a China. Porque agora o grande perigo vem da China", referiu Moreira de Sá, lembrando contudo que tal está comprometido pelos atuais acontecimentos mundiais. No caso da amizade entre Pequim e Moscovo, o especialista lembra que o que os une é querer acabar com a primazia dos EUA, tal como antes lhes interessava acabar com a unipolaridade norte-americana..susana.f.salvador@dn.pt