"Rejeição das armas nucleares foi vontade política do Cazaquistão porque sofremos 40 anos com elas"
Houve algo de diferente no processo da independência do Cazaquistão em 1991 em relação às outras repúblicas soviéticas, já que era a maior delas, tirando a Rússia, e também fortemente multiétnica?
A independência do Cazaquistão após o colapso da URSS aconteceu no mesmo período que nas outras 14 repúblicas da ex-União Soviética. A especificidade do nosso processo foi que nós fomos os últimos a sair da URSS, pois o nosso presidente insistiu em algum tipo de ligação, queria manter uma espécie de comunidade entre os países independentes da antiga união, aquilo a que chamámos um "divórcio civilizado". Portanto, não queria cortar todos os laços entre nós - a economia do Cazaquistão estava muito integrada com a dos vizinhos e, assim, qualquer corte de comunicação significaria que a nossa economia iria colapsar. Foi por isso que Nursultan Nazarbayev propôs alguma espécie de unidade ou comunidade. Devido a essa proposta e maioritariamente por insistência do presidente Nazarbayev, nós temos a CEI, a Comunidade dos Estados Independentes. Hoje pode ser vista como uma união pouco evidente de países, mas nos anos de 1990 foi muito importante ter uma plataforma para o diálogo, mesmo que apenas para criar comunicações comerciais entre os países, até para os cidadãos desses novos países viajarem entre estes, com as questões dos vistos e das fronteiras. Foi assim que a CEI foi criada sob proposta do nosso primeiro presidente, para mantermos algo em comum, pois quando a União Soviética começou a colapsar, todos os países queriam ter o máximo de independência, queriam quebrar todos os laços que os ligavam ao período soviético.
Outra especificidade do Cazaquistão, é que Nazarbayev era o líder da República Socialista Soviética e ficou, quase três décadas, como presidente do Cazaquistão independente. Foi uma fórmula que permitiu uma transição mais pacífica?
Nazarbayev esteve muito envolvido nos assuntos da União Soviética. Mikhail Gorbachev, que era o presidente da URSS na altura, propôs-lhe até que fosse vice-presidente. Por isso ele estava muito por dentro do que acontecia, tinha conhecimento de todas as questões económicas, sociais e políticas na União Soviética e, claro, na República Cazaque. Assim, quando o nosso país se tornou independente, estava na melhor posição para liderar o Cazaquistão, uma vez que conhecia não só as oportunidades que surgiam, mas também todos os problemas e desafios que a nova República enfrentava. Ao conhecer todos os detalhes, Nazarbayev era sem dúvida a melhor pessoa para liderar e gerir uma nova forma de desenvolvimento económico. É claro que quando se começa a criar uma coisa nova é muito difícil liderar todo um país, especialmente um tão específico como a nação cazaque, pois temos cerca de 130 grupos étnicos diferentes, assim como muitos grupos religiosos diversos, por isso precisávamos de ter uma espécie de unidade. Se tivéssemos ido por uma via de república parlamentar em que tivéssemos de ter um compromisso entre diferentes grupos políticos e sociais, teria sido difícil avançar com rapidez, levaria muito tempo para se alcançar algum tipo de compromisso que permitisse tomar decisões. Assim, durante os primeiros cinco ou seis anos da independência do Cazaquistão, tivemos um Conselho Supremo e houve várias lutas políticas para que se chegasse a algum tipo de conclusões ou decisões e isso atrasou as muito necessárias recuperações e reformas económicas e sociais - como transformar uma economia soviética antiquada numa economia de mercado; como fazer reformas e criar bases legais para investimento estrangeiro; como fazer reformas sociais e gerir propriedade privada, por exemplo. Foi uma época, há 30 anos, em que tudo era novo e havia muitas contradições entre as pessoas com uma mentalidade antiquada e os novos reformistas. O presidente Nazarbayev tinha um desafio histórico ao assumir toda a responsabilidade e construir um poder presidencial forte. Foi uma decisão pragmática, a de assumir toda a responsabilidade. Se olharmos para a transformação política do Cazaquistão durante estes anos, vemos que a cada cinco ou dez anos ele deu mais funções ao governo, com mais responsabilidades a passarem para este. E ficou com as questões mais estratégicas. Hoje, temos um equilíbrio entre os diferentes ramos do poder, temos um parlamento mais forte, um governo mais responsável e uma justiça mais independente. Pode não ser ainda o mundo ideal, ainda temos o desenvolvimento democrático em construção, mas foi assim que aconteceu. Foi por isso que em 2019 o presidente Narzabayev se pôde retirar para uma posição diferente, já não está envolvido na governação, mas pode supervisionar algumas coisas estratégicas.
Kassym-Jomart Tokayev é o sucessor de Nazarbayev. É possível ver-se já, nestes dois anos, uma marca pessoal do novo presidente ? Há só a diferença de estilo ou há também pontos de vista diferentes?
No geral, Tokayev segue o projeto e o modelo do Cazaquistão de Nazarbayev. Mas claro que é uma pessoa diferente, com outra idade e um tipo de antecedentes profissionais diferentes, por isso tem um estilo diferente. Nazarbayev veio da indústria, o seu estilo era a economia primeiro e a política depois. Nestes últimos dois anos, Tokayev , mesmo se segue as linhas de Nazarbayev, quis mais equilíbrio entre as reformas económicas e as políticas. Nestes dois anos ele fez reformas para proteger os direitos das crianças e das mulheres e talvez a sua especificidade seja dar muita atenção à comunicação entre o governo e todos os cidadãos. O novo presidente abriu muitas linhas de comunicação entre diferentes grupos sociais e o governo, seguindo a tendência global de transparência na governação. São mudanças táticas que melhoram o legado do presidente Nazarbayev. Não existe um mundo ideal, por isso o presidente Tokayev quer melhorar o mundo do antecessor.
Um dos sucessos destes 30 anos de independência é a relação entre a maioria cazaque - os cazaques étnicos são, hoje em dia, a maioria da população - e as outras comunidades. Pode-se dizer que as relações étnicas são as melhores entre os países da ex-União Soviética?
Nós tentamos. O Cazaquistão é uma sociedade multiétnica, não se pode dizer que hoje todos os cazaques falam uma língua e seguem uma só religião, isso seria impossível porque, historicamente, o Cazaquistão nunca foi considerado uma nação, um grupo étnico, pois nós somos o cruzamento de diferentes civilizações. Do ponto de vista histórico, nós estamos entre o mundo islâmico, o mundo asiático, o mundo russo, assim, se olharmos para o período histórico da Rota da Seda, nós estamos sempre na encruzilhada de diferentes culturas, línguas, tradições e vivemos harmoniosamente com esse desafio. Geneticamente, os cazaques estão habituados a viver numa sociedade multiétnica. O Cazaquistão, como parte da URSS, atravessou vários períodos como a Segunda Guerra Mundial em que muita população do lado europeu se mudou para cá com muita indústria, fábricas para apoiar o lado militar na luta contra a Alemanha e outras nações fascistas. Muitas pessoas mudaram-se para o Cazaquistão para sobreviver, pois a parte europeia da URSS estava envolvida na guerra e era perigosa. Em segundo lugar, aqui havia um enorme projeto agrícola numa altura em que o governo soviético começou a usar o território do Cazaquistão como uma das grandes bases para a produção de trigo e também atraiu por isso a população do lado europeu da URSS. Devido a tudo isso, no início da nossa independência tínhamos muitas populações não cazaques. Em 1989, quando tivemos uma investigação sobre quantas pessoas tínhamos, que grupos étnicos, a população cazaque era 46%.
Minoria na sua própria república...
Sim, nós éramos uma minoria. Porque recebemos muita população nova, com aptidões novas e antecedentes culturais diferentes e fomos maioritariamente absorvidos por essa corrente migratória vinda do exterior. Atualmente, os cazaques talvez sejam 70%. Isto devido a dois fatores: no início da independência uma parte das populações eslavas mudaram-se para a Rússia e nós lançámos o programa para os cazaques étnicos na China e outros países voltarem para casa. Conseguimos equilibrar e, hoje, os cazaques já não são uma minoria no seu país, mas não podemos ignorar ou rejeitar os outros grupos étnicos porque, por exemplo, para muitos russos o Cazaquistão é a sua pátria talvez desde há cinco ou seis gerações, alguns desde o período soviético, outros desde o período do império russo. Assim, não podemos dizer que são estrangeiros cá. Vivemos todos juntos e normalmente compreendemo-nos uns aos outros. Continuamos a usar a língua russa para comunicar, mas desenvolvemos a língua cazaque. Consideramos que levará algum tempo para tornar a língua cazaque a principal em todos os grupos étnicos para comunicarem entre si, porque o período soviético mudou realmente a paisagem linguística do país. Assim, atualmente estamos a tentar desenvolver a língua cazaque, transformámos o alfabeto do cirílico ao estilo russo para o estilo ocidental para tornar a língua cazaque mais integrada na comunicação global, pois o alfabeto latino é dominante. Estamos a tentar organizar a língua cazaque para a tornar atrativa para a comunicação global e é por isso que precisamos de algum tempo para melhorar a nossa língua e, passo a passo, generalizá-la na população. Não é feito de forma impositiva porque o governo promove a harmonia interétnica. Se olharmos para os membros do nosso governo, para os funcionários públicos ou para os empresários, encontramos todos os grupos étnicos. Assim, se forem seguidos os valores e a identidade cazaques, se se considerar o Cazaquistão como a pátria, tudo corre bem. Mesmo na nossa legislação, não temos nenhuma espécie de quotas étnicas, não há limites para qualquer grupo étnico, não importa se é alemão étnico, coreano ou russo, pode-se trabalhar no governo.
O Cazaquistão é o nono maior país do mundo mas com pouca população, 19 milhões. Em termos de relações exteriores, a vossa política é aproveitar o estar no meio e ser amigos de todos, sejam os outros países da Ásia Central, a Rússia, a China, a UE ou os Estados Unidos?
Sim. É é aquilo a que chamamos política multivetorial. A nossa política externa foca-se maioritariamente em questões económicas, não seguimos intrigas geopolíticas, não temos qualquer ambição de nos tornarmos numa espécie de potência regional. A nossa política externa foca-se principalmente em relações amigáveis com toda a gente pois isso significa segurança, não temos problemas com outros e, assim, podemos ter relações comerciais com todos. Nos primeiros dez anos da nossa independência dedicámos muita atenção à estabilização das nossas fronteiras e que ficassem fixadas para sempre. Não temos qualquer questão com os nossos vizinhos. A segunda década foi dedicada principalmente a aumentar as relações com os nossos parceiros, mantemos relações com a Rússia, China, EUA, UE, mundo islâmico e Ásia no geral. Assim, quando alargámos os horizontes das nossas relações, na terceira década tentámos tornar a nossa situação lucrativa, pois 70% do comércio que flui da Ásia para a Europa passa pelo Cazaquistão. É fruto de não termos problemas com nenhum vizinho, o que significa que qualquer comércio é bom para o Cazaquistão e que não pode parar na fronteira. Assim, qualquer dos nossos vizinhos permite que esse comércio passe por ele. Somos amigos de todos e, principalmente, estamos focados na nossa prosperidade, por isso queremos uma política que traga estabilidade e promova a prosperidade.
A política antinuclear é muito importante para a imagem internacional do Cazaquistão? Começa com o encerramento de Semipalatinsk em 1989, ainda durante os tempos soviéticos, e vai até hoje com o patrocínio do tratado para banir todas as armas nucleares.
Absolutamente. Devemos procurar as raízes da missão nuclear do Cazaquistão em 1949 quando o sítio de testes nucleares de Semipalatinsk foi estabelecido no nosso território na era soviética. Durante 40 anos tivemos cerca de 456 explosões. Quando Nazarbayev começou a sua luta para fechar o sítio de testes ficou sob grande pressão política, pois a URSS considerava que as armas nucleares eram um elemento fundamental no seu sistema de defesa. Eles não percebiam como é que nós podíamos rejeitar a ideia de melhorar as nossas armas nucleares. Mas Nazarbayev contava com o apoio do público, pois as pessoas em Semipalatinsk e por todo o Cazaquistão, sobretudo os jovens, promoveram muito a ideia. Foi assim que o conseguimos fazer há 30 anos. Depois a URSS colapsou. Nós tínhamos uma indústria de produção de urânio no nosso território, tínhamos mísseis estratégicos, a infraestrutura para os operar e isso era terrível. Algumas pessoas pensavam que nós não podíamos manter essa capacidade, mas eu penso que é um entendimento errado, pois houve bastantes propostas de outros países, principalmente do mundo islâmico, inclusivamente com dinheiro, para ajudar a manter as armas nucleares no Cazaquistão. Hoje, somos o número um na produção de urânio e temos muitos cientistas experientes na área nuclear civil. Se o nosso governo quisesse manter o arsenal nuclear seria fácil, pois ninguém poderia fazer nada. Basta olhar para exemplos como a Coreia do Norte, ninguém pode fazer nada para impedir o governo norte-coreano de manter o armamento nuclear e nós no Cazaquistão tínhamos tecnologia muito avançada.
Portanto, desistir do quarto maior arsenal nuclear não foi uma questão de dinheiro, de capacidade?
Não. Foi uma rejeição das armas nucleares. Foi uma questão de livre vontade política do Cazaquistão. Especialmente porque sofremos durante 40 anos com essas armas e sabíamos como eram perigosas. Basta olhar para as estatísticas e vemos que uma explosão por mês durante 40 anos fez com que dois milhões de pessoas sofressem com elas. Ainda há centenas de milhares de pessoas que sofrem os efeitos das radiações com vários cancros e outras doenças. Portanto, não é necessário nenhum tipo de propaganda nem de informação ideológica para compreender como este tipo de arma é perigosa, mesmo só em testes. O presidente Nazarbayev percebeu desde o início que o Cazaquistão tinha de seguir um modelo diferente, tinha de ser reconhecido como membro da comunidade global, tinha de ter boas relações com toda a gente que quisesse ser amiga do país e que tinha de promover a nossa prosperidade através de laços económicos com outros países. Era esse o modelo e tínhamos de rejeitar as armas nucleares em troca. O Cazaquistão foi reconhecido pelo mundo, pois ninguém até então na história tinha abdicado de uma capacidade de poder tão grande.
leonidio.ferreira@dn.pt
DN viajou a convite do MNE do Cazaquistão