Um homem inquebrável como o aço, outro frágil como o vidro e ainda outro com a personalidade estilhaçada. Respetivamente, Bruce Willis, Samuel L. Jackson e James McAvoy são a combinação sui generis na base do tão aguardado Glass, derradeiro momento da trilogia que se convencionou chamar Eastrail 177 (o nome do comboio que descarrila no primeiro filme)..Trilogia que é uma singularíssima abordagem do universo dos super-heróis por M. Night Shyamalan. Quer dizer, um olhar que troca a receita estafada das narrativas de ação pela análise acutilante do papel dos comics na sociedade e na cultura (já não apenas americana)..Quando o realizador lançou a piscadela de olho na cena final de Fragmentado (2016), com a súbita aparição de Bruce Willis, deixando o espectador avisado de que estava no mesmo território de O Protegido (2000), assumiu uma jogada de risco. Vislumbrar o aceno para um terceiro filme, que deveria reunir novamente Willis com Samuel L. Jackson e o recém-apresentado James McAvoy, fazia pairar uma interrogação elementar. A saber, como é que esse segundo filme - Fragmentado -, que até ao seu último minuto não era percebido como uma sequela, poderia servir de élan para um terceiro capítulo? A pergunta justifica-se porque a linguagem agressiva deste último pouco se compara à subtileza da construção dramática de O Protegido. E a resposta, claro, está no objeto acabado, Glass, que não é apenas a síntese dos dois títulos anteriores, mas também uma nova variação formal desses. Para todos os efeitos, falamos de uma peça que não vive, de todo, isolada do que lhe precedeu..Convém então recuar: em O Protegido, David Dunn (Willis) não só é o único sobrevivente de um trágico acidente de comboio (o tal Eastrail 177) como saiu completamente ileso do desastre. Algo que chama a atenção dos jornais, mas sobretudo a de Elijah Price (Samuel L. Jackson), um artista aficionado de comics que nasceu com uma doença rara nos ossos - estes quebram-se muito facilmente. Ele, a quem chamam Mr. Glass, que cresceu imerso em bandas desenhadas de super-heróis, vai tentar provar ao tímido David que a sua fortuna não resulta de um milagre mas sim da manifestação de que é... um super-herói. E, mais ainda, que é, pelas extraordinárias características físicas (daí o título original do filme ser Unbreakable), o seu extremo oposto..Com esse brilhante e visionário filme, realizado a seguir ao célebre O Sexto Sentido (1999), Shyamalan media o pulso ao futuro, antecipando aquilo que veio a ser a invasão maciça dos super-heróis na cultura e na indústria cinematográfica. O Protegido surgia assim como um gesto aparentemente fechado, isolado, que só encontrava réplica no próprio panorama que se estava a formar..Eis senão quando, dezasseis anos depois, Fragmentado vem lançar de novo os dados, apresentando um protagonista, Kevin Wendell Crumb (James McAvoy), com um distúrbio psiquiátrico que faz coexistir dentro de si 23 personalidades - a aguardarem o irromper de uma vigésima quarta. Aqui acompanhamos, em suspense, o desenvolver de um caso clínico supervisionado por uma psiquiatra (Betty Buckley), que envolve um crime: Kevin raptou três jovens e mantém-nas em cativeiro à espera de que a sua faceta mais obscura e sobre-humana - designada por "Besta" - se revele para um ato sacrificial... Só no fim se percebe que continuamos na Filadélfia de O Protegido, e que o transtorno de Kevin é, afinal, mais um argumento que dá razão à teoria de Elijah/Glass. Isto é, que os seres extraordinários não existem apenas na literatura de quadradinhos; pelo contrário, essa literatura de entretenimento é uma documentação histórica de fenómenos inverosímeis testemunhados por alguém, em qualquer tempo..No universo de Shyamalan.Por sua vez, este novo filme, Glass, colocando logo na parte inicial o justiceiro David em confronto direto com Kevin, rapidamente inverte as regras do jogo transferindo e encerrando as personagens na mesma instituição psiquiátrica onde se encontra o antigo "caça-talentos" Elijah (qualquer reminiscência de Voando sobre Um Ninho de Cucos não é mero acaso). Aí eles vão ser avaliados por uma especialista (Sarah Paulson) que diz tratar pessoas com um distúrbio mental, "cada vez mais frequente nos nossos dias", que os leva a acreditar serem super-heróis....Caso para dizer que, depois de ter lançado a reflexão em O Protegido, Shyamalam quer-nos falar agora, no âmago dos novos tempos, da dimensão incontrolável deste fenómeno que então se começava a observar, focando-se no ímpeto social de uma higienização. E nas entrelinhas tece uma crítica afinada à omnipotência da Marvel e da DC Comics gerada pela indústria americana..É também nessa capacidade de ainda pôr os dedos no pulso da realidade, para lá do mero estímulo narrativo dos títulos anteriores, que Glass vinga enquanto filme que disseca o mecanismo dos super-heróis. Embora seja mais do que isso..Se olharmos para a trilogia num todo compreendemos na estrutura e na prosa fílmica uma dinâmica cumulativa: no primeiro filme, Bruce Willis e Samuel L. Jackson são os opostos perfeitos - um não quebra, o outro é bastante vulnerável; no segundo, James McAvoy é uma mistura desses dois - tem uma força física sobre-humana, mas a sua personalidade quebra-se como vidro; e no terceiro momento, a vulnerabilidade física de Samuel L. Jackson dá lugar ao jogo mental que expõe a mitologia das personagens dentro do universo criado pelo cineasta..Por outro lado, M. Night Shyamalan fez cada um dos filmes à imagem e semelhança dos seus protagonistas. Se O Protegido, sem dúvida o mais atmosférico e elegante dos três, vive dos movimentos e da expressão suave de Willis, Fragmentado é selvagem como McAvoy e Glass um labor silencioso do génio aparentemente letárgico. Por essa razão, este é o autêntico filme antiassuper-heróis, que demora a arrancar e canaliza numa sofisticada linguagem formal e dramática - muito assente na shyamalaniana metáfora visual do vidro/reflexo - a clareza da sua mensagem. Se quisermos ainda, é a subversão dos códigos dos filmes de super-heróis por uma ideia de cinema em que, imagine-se, o gesto narrativo se confunde com a maneira de colocar a câmara, em vez da proeza oca dos efeitos especiais..**** Muito bom