Regra e contra-regra no magnífico pavilhão

A série <em>The Comey Rule</em> não melhora quando Trump entra em cena; não melhora - mas fica muitíssimo mais interessante. A interpretação de Bredan Gleeson, apesar da peruca e do bronzeado falsificado, acaba por ser uma versão menos exuberante doque o original.
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Todas as pessoas culturalmente colonizadas em grau suficiente para assistir aos debates presidenciais americanos de quatro em quatro anos (0/) arriscam renovar a mesma surpresa de quatro em quatro anos: a quantidade de pessoas que falam antes de o debate começar. Este ano, no preciso momento em que um dos streams oficiosos deixou de gaguejar, um homem dizia "em nome da minha clínica, gostaria de dar a todos as boas vindas a Cleveland, e a este magnífico pavilhão...". De seguida, subiu ao palco do magnífico pavilhão um membro da Comissão dos Debates Presidenciais para garantir que "milhões de espectadores" teriam a oportunidade de ver dois homens "apresentarem os seus argumentos para liderarem esta grande nação". Argumentos. Protocolos. Regras. Os debates presidenciais sempre foram isto, de quatro em quatro anos, e a mistura de memória histórica, hábito profissional e condicionamento cultural obriga grande parte da imprensa a tratá-los da mesma maneira: uma relíquia nostálgica do pós-guerra, repleta de arquétipos de Frank Capra e iconografia dos anos 50 (quando o presidente americano também devia representar o papel tácito de reitor, treinador de basebol ou advogado bondoso num filme da Disney). Os debates eram construções puramente artificiais, sem nunca esconderem a sua artificialidade. Os candidatos cumprimentavam-se, sorriam debaixo de holofotes e o moderador perguntava solenemente: "Está no deserto, a caminhar na areia, quando de repente olha para baixo e vê uma tartaruga virada ao contrário. A tartaruga está a torrar ao sol e não consegue virar-se sem a sua ajuda. Porque é que não a ajuda?" Vários mecanismos que controlam músculos faciais seriam então activados, e cada um dos candidatos bem oleados responderia alguns polissílabos agradáveis sobre uma era de grandes desafios, sobre a necessidade de proteger as famílias que trabalham, sobre a perene vitalidade do sonho americano.

São os rituais e formalismos que constituem grande parte do processo democrático que ajudaram a criar a ideia recebida de que todos os políticas são essencialmente autómatos intercambiáveis - a mesma ideia recebida que permite a entrada no sistema de anomalias ocasionais, que se definem exclusivamente pela disponibilidade para dizerem e fazerem coisas que os outros não dizem nem fazem. Nenhuma anomalia até agora tinha sido tão anómala quanto esta, e um dos efeitos colaterais é que os antigos formalismos parecem mais artificiais do que nunca.

Com a sua postura habitual de uma invasão de um género diferente (uma combinação de entretenimento vintage, reality show e filme de culto), Donald Trump limitou-se portanto a fazer e a dizer no debate aquilo que ninguém costumava fazer nem dizer em debates. A distância entre as perguntas impotentes do moderador e as respostas podia medir-se em quilómetros. Um candidato a contar uma história comovente sobre o seu filho veterano de guerra (como fez Biden) faz parte do reportório e poderia ter acontecido em qualquer debate televisionado dos últimos 50 anos. O presidente dos Estados Unidos responder com "esse filho eu não conheço, conheço é o outro, que é viciado em cocaína" foi certamente uma novidade.

Mas a performance não foi tão nova quanto isso. Vamos no quinto ano, e nada se forma mais depressa do que um hábito. A reacção instintiva continua a ser a mesma ("ele disse o quê?" "não pode ser"), determinando o ritmo e o conteúdo de cada ciclo noticioso; as variáveis que mudam sob a pressão da fadiga acumulada parecem ter um efeito destabilizador, mas não produzem qualquer alteração significativa. Por instinto ou por inércia, Trump responde a perguntas que não ouviu, dizendo coisas que não percebe sobre várias situações que o irritam, mas cuja natureza não é capaz de definir nem explicar. Com o seu vocabulário de aproximadamente 150 palavras (um terço das quais são intensificadores de tamanho ou volume), e não sabendo nada que seja coerente ou útil de repetir, acaba por resvalar sempre para a mesma saída: repetir com distorções algo que ouviu vagamente na televisão, associando essa memória distorcida à única coisa que lhe interessa verdadeiramente: ele próprio. Uma notícia da Fox sobre um polícia no Wisconsin que encontrou numa valeta nove boletins eleitorais militares perdidos durante o transporte foi transformada em tempo real num camião a despejar deliberadamente milhares de votos num rio. Todos os votos tinham o seu nome. A eleição pode ser fraudulenta: "Isto não vai acabar bem."

A análise pós-debate, apesar de tudo, não seguiu os trâmites habituais. Com a excepção de alguns resquícios nostálgicos do passado, que insistiram em tratar a coisa nos termos habituais (quem "venceu" ou "perdeu" o debate? Quem foi mais presidencial?), as reacções agregaram-se no ciclo de exasperação e condenação também já habitual. Dias antes, o ciclo fora dedicado à revelação de que Trump pagara 750 dólares em impostos nos anos de 2016 e 2017 ("paguei milhões", afirmou durante o debate). Dias depois, o ciclo foi sismicamente alterado por um teste positivo ao covid-19. O protagonista nunca muda.
Esta semana também viu a estreia de The Comey Rule (HBO Portugal), uma minissérie em quatro episódios que dramatiza a intervenção pública do ex-director do FBI sobre a investigação a Hillary Clinton nas semanas que precederam a eleição de 2016. Na melhor tradição dos telefilmes baseados em factos reais, The Comey Rule tem um interesse reduzido para qualquer pessoa sem interesse nos factos reais, e um interesse ainda menor para qualquer pessoa que já os conheça, mas ilustra inadvertidamente um dos problemas do mundo nos últimos cinco anos: a série não melhora quando Trump entra em cena (no terceiro episódio); não melhora - mas fica muitíssimo mais interessante. A interpretação de Brendan Gleeson, apesar da peruca e do bronzeado falsificado, acaba por ser uma versão menos exuberante do original, mas as suas deixas são as únicas que não soam a diálogo medíocre num telefilme banal. Sempre que aparece, o cenário é mastigado e o elenco reduzido a uma colecção de figurantes. O resto da série vai seguindo o impulso hagiográfico de homenagear um nobre funcionário público forçado a escolher entre duas opções terríveis, mas aquilo que melhor dramatiza é a inoperância de uma estrutura de regras e normas quando os envolvidos não seguem todos o mesmo guião, fingindo que não é um guião.

Escreve de acordo com a antiga ortografia

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