"Registo de abusadores só serve para as pessoas se sentirem bem"

O criminologista americano Richard Tewksbury lembra, em entrevista ao DN, que a esmagadora maioria dos crimes de abuso sexual são cometidos por pessoas que nunca foram detidas anteriormente. Ministra da Justiça fala em "reincidência louca".
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O governo português apresentou uma proposta de lei que cria um registo nacional de pessoas condenadas por abuso sexual de menores, baseando essa proposta numa alegada reincidência neste tipo de crime de 80% a 90%. Diz que existem "numerosos estudos internacionais que apontam para elevado nível de reincidência", porém sem apresentar qualquer referência desses estudos. Aliás, a única referência apresentada, a de um livro de um investigador português [o psicólogo criminal Mauro Paulino], foi denunciada pelo mesmo como falsa. Quer comentar?

O governo português está enganado. A reincidência entre abusadores de crianças identificados, como para todos os agressores sexuais, está entre as mais baixas de todos crimes. Enquanto muitos abusadores de crianças reincidem várias vezes, uma vez identificados e julgados a reincidência é muito baixa. Existe uma larga quantidade de estudos científicos demonstrando que o mito da alta reincidência é isso mesmo, um mito.

Precisamente, no seu trabalho Sex Offenders : Recidivism and Collateral Consequences (Agressores Sexuais: Reincidência e Consequências Colaterais), publicado em 2012, diz, com base em estudos anteriores, que "os agressores sexuais apresentam taxas relativamente baixas de reincidência". De que tipo de taxas estamos a falar?

Tipicamente vemos taxas de reincidência na ordem dos 10%-15%, nunca nada de parecido com 80%-90%. Trata-se de uma taxa de reincidência abaixo das de todos os outros crimes, à exceção da do homicídio.

Também diz no seu trabalho que existem agressores sexuais de baixo risco e de alto risco, e que abusadores de crianças, especificamente os que preferem crianças do mesmo sexo, estão entre os de mais alto risco. Qual a reincidência nesses casos?

Não apurámos taxas tão específicas de reincidência no nosso trabalho.

O vosso estudo compara taxas de reincidência no estado de Nova Jérsia, o primeiro a criar uma lei de Megan (foi em Nova Jérsia que Megan Kanka, que dá o nome às leis, foi violada e assassinada por um morador da mesma a rua com cadastro por abuso sexual de menores) antes e depois da entrada em vigor do registo de agressores sexuais, em 1995. Pode explicar a que conclusões chegaram?

O que o nosso trabalho demonstra é que enquanto o registo é algo que muita gente crê servir para reduzir a taxa de reincidência, na verdade não existem diferenças estatísticas significativas nas taxas de reincidência antes e depois de o registo estar a funcionar. O que sugere que a medida não tem qualquer efeito na reincidência dos agressores sexuais. Devemos também ter em mente que a esmagadora maioria dos crimes sexuais, de todos os tipos, são primeiros crimes ou, pelo menos, cometidos por primários [pessoas nunca condenadas por aquele tipo de crime ou que nunca chamaram a atenção das autoridades]. Com a maioria dos crimes deste tipo a serem cometidos por pessoas que nunca foram antes detidas, não há forma de um sistema de registo e notificação influenciar a reincidência.

Antes da entrada em vigor do sistema em Nova Jérsia, a reincidência em termos de crimes sexuais era de 13%; depois era de 9,7%. Isto não é uma melhoria?

Parece sê-lo, mas devido ao tamanho da amostra não pode assegurar-se que não se trata de um efeito aleatório e portanto sem significado estatístico.

Uma das conclusões do estudo é que "sendo claro que existem benefícios limitados dos sistemas de registo e notificação de agressores sexuais na reincidência no mesmo tipo de crimes ou noutros", "os responsáveis pelas políticas e pelo tratamento deveriam concentrar os seus esforços nos agressores sexuais identificados como apresentando uma trajetória de alto risco e incidindo particularmente nos fatores de alto risco a ela associados. Estes esforços deveriam ter como alvo a identificação atempada, tratamento e a redução da reincidência daqueles que apresentam o mais elevado risco de voltar a cometer o crime e que são responsáveis pela parte de leão da reincidência". Defende portanto a existência de um registo especificamente desses agressores e não de todos?

Os sistemas de registo e notificação têm interesse, sobretudo quando lidando com predadores sexuais e aqueles que já estão identificados como reincidentes. Para os agressores de mais alto risco, e aqueles com graves doenças mentais e outras afeções, estes sistemas também podem ser importantes. Mas quando todos os agressores sexuais são incluídos o tamanho do registo é tal que se torna difícil de usar e muitos potenciais utilizadores consideram-no esmagador e simplesmente inútil.

Defende que as comunidades devem poder saber se existem pessoas previamente condenadas por crimes sexuais no seu seio, se essas pessoas tiverem sido identificadas como de alto risco?

No caso dos muito poucos agressores de muito alto risco, aqueles que são tipicamente predadores e têm como alvo estranhos/desconhecidos, sim, estes sistemas têm valor.

Investigou também os efeitos colaterais e perversos destes sistemas; por exemplo, no trabalho de outro investigador [o britânico TerryThomas - ler texto nesta página], vi referência ao facto de, por os registados terem restrições de residência, ter aumentado muito o número de ex-condenados sem-abrigo, o que os toma muito mais difíceis de "controlar", para além de impedir a sua reinserção social e poder mesmo contribuir para que reincidam no crime.

As restrições residenciais que acompanham os sistemas de registo e notificação de agressores sexuais condenados em várias comunidades americanas não permitem que essas pessoas tenham habitação a menos de certa distância de "locais de congregação de crianças", ou seja, escolas, centros ATL, creches, e às vezes até paragens de autocarros escolares, jardins e parques infantis. Quando grande parte das residências disponíveis são proibidas para estas pessoas, elas ficam, não raro, sem sítio onde viver.

O seu estudo também fala do custo exclusivamente financeiro da medida. Em Nova Jérsia, que tem uma população de nove milhões, uma auditoria apurou que manter o registo a funcionar custa cerca de quatro milhões de dólares (três milhões e 700 mil euros) anualmente. Porque é tão caro?

Há custos de tecnologia e horas de trabalho para os funcionários para atualizar, manter, limpar e monitorizar os sistemas. Além disso, é o governo; alguma vez conseguem fazer alguma coisa que não seja cara?

Dado os vários custos e o pouco, se algum, efeito real destes sistemas na redução da reincidência, por que acha que a medida nunca foi repensada nos EUA e tem até sido posta em prática noutros países?

O registo e notificação de agressores sexuais é muito popular, e foi "vendido" como servindo para "proteger as crianças", que é algo que toda a gente quer poder fazer. E o que sucede é que pouca gente sabe que esta política tem pouco ou nenhum do efeito desejado. O público e os legisladores vêem isto como "qualquer coisa" que pode ou não fazer a diferença, e os custos são vistos como aceitáveis se algum efeito, mesmo muito pequeno, for conseguido. Trata-se acima de tudo de uma medida para fazer as pessoas sentirem-se bem.

Das meninas mortas à menina dos olhos dos tabloides

Se as "leis de Megan" não parecem diminuir a reincidência, têm efeitos perversos pouco divulgados. E são caras.

"Em 2013-2014 tivemos 174 crimes graves cometidos por pessoas que estavam no registo. Estar no registo não faz diferença se se quer continuar a cometer crimes." Terry Thomas, professor retirado de estudos de justiça criminal na Universidade de Leeds (Reino Unido) e autor do livro Registo e Monitorização dos Agressores Sexuais (Routledge, 2011), veio em setembro a Portugal falar das "leis de Megan". A inspiração, Megan Kanka, foi uma menina de 7 anos violada e assassinada em 1994, no Estado de Newjersey, EUA, por Jesse Timmendequas, com cadastro por abuso sexual de menores e morador na mesma rua.

O conhecimento prévio de que aquele homem fora previamente condenado por abusar de crianças teria salvo a filha, alegaram os pais, desencadeando um movimento que acaba por conseguir a aprovação de uma lei com o seu nome. Trata-se de um registo com o nome e paradeiro pós-condenação de agressores sexuais (todos e não apenas de menores) que implica o conhecimento das comunidades e restringe, na maioria dos Estados, os locais onde estes podem habitar, além de os impedir de trabalhar com crianças.

No seu livro, Terry Thomas faz uma descrição dos vários tipos de "leis de Megan" existentes. "São todas o mesmo, de uma forma geral", diz ao DN. "A grande diferença está no tipo de acesso. Nos EUA é universal. Os registos estão acessíveis oníine, o que também sucede num dos estados australianos. No meu país o acesso é seletivo, para pessoas que 'possam precisar de saber', e através de um procedimento administrativo a que se deu o nome de lei de Sarah' [por causa de Sarah Payne, que foi violada e morta em agosto de 2000 por Roy Whiting, que tinha condenações anteriores por agressão sexual a crianças]. A campanha para a criação de um registo com acesso universal foi liderada pelo tabloide News of the World [entretanto encerrado por causa do escândalo de escutas ilegais a milhares de "figuras públicas"] , mas decidiu-se que seria a polícia a decidir quem pode aceder à informação. Desde abril de 2011 que o registo é nacional." O livro aborda alguns efeitos perversos das leis. Desde logo a revelação pelos tabloides, no Reino Unido, dos nomes e localizações dos registados -o acesso "seletivo" não durou muito.

Mas além da óbvia pressão psicológica, social e mediática sobre os ex-condenados e respetivas famílias, com episódios de violência e perseguição, um estudo de 2008 do governo da Califórnia dá a ver, no espaço de um ano, um aumento de 60% nos agressores sexuais sem casa devido às restrições habitacionais: 2050 em junho de 2007 para 3267 em agosto de 2008, verificando-se inclusive a existência de "bairros de barracas" onde só viviam pessoas incluídas no registo ou aglomerados das mesmas a viver literalmente debaixo de pontes.

Um ex-condenado é citado dizendo que o seu agente de liberdade condicionalo manda arranjar uma casa e a polícia lhe diz que não pode sair de onde está.

Considerando que a desinserção familiar e social é um fator de risco em qualquer tipo de crime, tratar como párias estas pessoas talvez não seja a melhor forma de as manter "na linha". Mas Thomas cita outros efeitos perversos do registo. Um é o de que os acusados destes tipos de crime resistem mais a declarar-se culpados, arrastando processos e incrementando os custos judiciais. E além do preço do próprio sistema tecnológico, que no Canadá foi estimado em 400 a 600 mil euros, existe a sua manutenção, que, refere Thomas, no estado canadiano de Ontário corresponde a quatro milhões de dólares anuais. Em termos de trabalho policial, é consistentemente referido como consumindo muitos recursos.

O DN perguntou ao Ministério da Justiça qual a previsão orçamental para o registo português, mas até ao fecho desta edição não obteve resposta. Quanto à informação científica sobre a eficácia dos registos de agressores sexuais no diminuir da reincidência que terá servido de base à proposta de criação da "lei de Megan" à portuguesa, a resposta do gabinete de Teixeira da Cruz é de que "não compete ao governo português elaborar relatórios científicos sobre leis publicadas noutros países".

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