Quando Peter Handke recebeu o Nobel da Literatura, nem sempre se referiu o facto de a sua trajetória ser indissociável do cinema. E não apenas através das suas colaborações com Wim Wenders - sendo As Asas do Desejo (1987) a óbvia e fundamental referência -, mas também como criador na primeira pessoa. Entenda-se: como realizador..Podemos, agora, redescobrir um momento fundamental do seu trabalho como cineasta: A Mulher Canhota, realizado a partir do seu romance homónimo, foi editado em DVD, em excelente cópia restaurada. Trata-se de uma produção de 1978 (o romance fora publicado dois anos antes) que, na carreira de Handke, surge já depois das suas primeiras colaborações com Wenders: A Angústia do Guarda-Redes no Momento do Penalty (1972) e Movimento em Falso (1975), o primeiro a partir do seu romance homónimo, o segundo adaptando Os Anos de Aprendizagem de Wilhelm Meister, de Goethe..É um daqueles filmes em relação aos quais não podemos deixar de sentir que qualquer sinopse é insuficiente. Em termos simples, podemos resumi-lo como o retrato de uma rutura conjugal: Marianne afasta o marido, Bruno, da sua existência, entregando-se a uma solidão austera, apenas atenuada pela presença do seu filho..Mais de quatro décadas passadas sobre o lançamento de A Mulher Canhota, o mais surpreendente, e também o mais atual, será a sua resistência a qualquer visão banalmente "psicologista" do universo feminino. A visão dramática de Handke distingue-se, aliás, por um valor fundamental: o respeito dramático, indissociável do calor humano, por aquilo que faz de cada personagem, a começar por Marianne, um ser irredutível, fascinante mesmo (ou sobretudo) quando indecifrável..O envolvimento de tudo isso é indissociável da notável direção fotográfica de Robby Müller (1940-2018), colaborador regular de Wenders. A austeridade das cores não exclui, antes pelo contrário, a emergência de uma contida sensualidade que, afinal, em última instância, não é estranha à exposição dos enigmas de cada personagem..Seja como for, importa destacar o calculado registo ambíguo das representações, em particular do par formado por Marianne e Bruno, ou seja, Edith Clever e Bruno Ganz. A ambiguidade nasce de uma forma de estar que recusa qualquer determinismo, abrindo-se a um ziguezague emocional entre o concreto e o abstrato ou, se assim o entendermos, entre o "corpo" e a "alma"..Curiosamente, tinham contracenado dois anos antes em A Marquesa d'O, de Eric Rohmer. Em 1982, Clever viria a assumir o papel que lhe conferiu, definitivamente, um lugar na história e na mitologia do cinema alemão: ela foi Kundry na adaptação do Parsifal, de Wagner, assinada por Hans-Jürgen Syberberg.