MP arrasa juiz que não quer julgar suspeito de recrutar terroristas
Abdessalam Tazi, marroquino de 64 anos, está desde março de 2017 detido, em prisão preventiva, na cadeia de alta segurança de Monsanto. O "superjuiz" Carlos Alexandre concordou com essa medida de coação proposta pelo Ministério Público (MP) pela prova apresentada em relação aos crimes que lhe eram imputados: adesão a organização terrorista internacional, falsificação com vista ao terrorismo, recrutamento para o terrorismo, financiamento do terrorismo e quatro crimes de uso de documento falso com vista ao financiamento do terrorismo. Todos cometidos em território nacional.
Segundo o MP, pelo menos três jovens, igualmente marroquinos, foram daqui para integrar as fileiras do Daesh, na Síria, com apoio logístico, financeiro e radicalizados por Tazi. Um deles, Hicham el Hanafi, está preso em França, desde novembro de 2016, por envolvimento na preparação de um atentado naquele país. Há testemunhas, diretamente envolvidas, contra o marroquino, incluindo a do próprio pai e do irmão de Hanafi, bem como de amigos, que envolvem Tazi no processo de radicalização, recrutamento e financiamento para o estado islâmico.
No entanto, uma reviravolta aconteceu no processo - que colocava Portugal na lista de países da União Europeia que foram palco de recrutamentos terroristas. Durante a instrução, Ivo Rosa, o outro juiz do Tribunal Central de Instrução Criminal (TCIC), deitou tudo abaixo, despronunciando, ou seja, achando que não devia ir a julgamento, o arguido, por tudo o que dizia respeito ao terrorismo. Sustentava o juiz que a acusação formara a sua convicção "em meios de prova indireta", que podem ter diversas leituras e interpretações. Ignorou os principais testemunhos do MP e considerou até que só quem comete atentados pode ser considerado como apoiante de uma organização terrorista, esquecendo todo o rol de crimes que a lei prevê, por exemplo, nos atos preparatórios, financiamento e recrutamento.
Para este magistrado, Abdessalam Tazi deverá apenas responder por um crime de falsificação de documento (relativo à falsificação do passaporte) e por quatro crimes de contrafação de moeda (relativos ao uso de quatro cartões de crédito falsos).
A decisão de 22 de junho foi agora alvo de um recurso dos procuradores, que o DN consultou. O procurador da República João Melo, do Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP), assina 129 páginas de argumentos, sustentados nas provas recolhidas pela investigação - coordenada pela Unidade Nacional de Contraterrorismo da PJ - assinalando que "por muito menos existem condenados na UE a penas pesadas de prisão".
O MP argumenta que "tais factos foram cometidos em território nacional por um grupo de indivíduos naturais de Marrocos, os quais, após solicitação, obtiveram o estatuto de refugiados junto das entidades competentes e passaram a residir em Portugal, desenvolvendo atividades de recrutamento de novos elementos, bem como importantes atividades de angariação de apoios financeiros utilizados nas ações de recrutamento em benefício dos ideais defendidos por tal organização".
O financiamento concretizar-se-ia "através da prática massiva de crimes através da utilização de documentação e cartões de crédito falsos, sempre para obterem elevados proveitos económicos que utilizaram e cederam para outros apoiantes da organização com o intuito de suportarem e manterem o designado "Califado" proclamado e reivindicado pelo Estado Islâmico/ISIL".
A prova da concretização destas ações por parte de El Hanachi "culminou com a sua detenção em território francês, quando se preparava para adquirir armas com vista à prática de novo atentado em território francês, ação esta abundantemente fundamentada na prova recolhida pelas autoridades francesas".
O MP entende que houve "uma realidade que escapou ao JIC (Juiz de Instrução Criminal) ". A primeira falha está logo no enquadramento jurídico da sua análise, segundo a qual, só quem comete atentados pode ser considerado terrorista. O MP contesta, recordando o conjunto de crimes autónomos que se podem cometer em função de uma organização terrorista.
"Só quem adere aos desígnios do Daesh é que se dedica a radicalizar e recrutar jovens combatentes para as suas fileiras. Apoiar e colaborar com o Daesh, seja através do fornecimento de informações ou meios materiais, seja recrutando elementos para integrar as fileiras de combatentes, seja prestando-lhes apoio financeiro, seja através de outra forma de colaboração com os referidos desígnios, integra a factualidade típica do crime previsto no art.º 2.º da Lei 52/2003, de 22 de agosto, conforme imputado na acusação. É esta realidade que escapou à análise do Meritíssimo JIC."
O MP lamenta que Ivo Rosa tenha considerado "inócuos" os factos que sustentam o modus operandi adotado pelo arguido em apoio do Daesh, nomeadamente a colaboração do arguido nos desígnios do Daesh com vista à radicalização e recrutamento de jovens para integrarem as fileiras de combatentes do DAESH e também no apoio financeiro ao terrorismo, através das despesas suportadas pelo arguido em relação a tais jovens, em especial quanto ao suspeito Hicham Hanafi".
O MP salienta que "ao contrário do defendido" por Ivo Rosa, "o crime de financiamento ao terrorismo pode ser cometido por qualquer meio, lícito ou ilícito, direto ou indireto, tratando-se de um crime autónomo, quer do crime instrumental de falsificação de documentos, passagem de moeda falsa ou qualquer forma de apoio financeiro prestado a terroristas ou organizações terroristas".
Neste caso, "a utilização de cartões de crédito falsificados, por parte de um indivíduo que aderiu e passou a colaborar com o Daesh, como meio de financiar despesas e prestar apoio a pessoas que o agente procurou recrutar (e no caso do Hicham Hanafi efetivamente recrutou e apoiou financeiramente) para aderir a tal organização terrorista internacional, constitui um ato instrumental do crime de financiamento ao terrorismo, sendo punido em concurso (crime de financiamento ao terrorismo e crime de uso de documento falsificado)."
O MP também contesta frontalmente o facto de Ivo Rosa não ter validado os testemunhos que foram enviados pelas autoridades francesas, as quais, pela relação direta com Hanafi, puderam confirmar o envolvimento direto de Tazi, quer na sua radicalização quer no financiamento das suas atividades em nome do Daesh.
Uma das testemunhas é o pai do marroquino que está detido em França. "Abdessalam Tazi estabeleceu laços de amizade com o meu filho; e foi ele quem o recrutou e lhe meteu na cabeça as ideias terroristas, e é ele o responsável pela sua radicalização", afirmou.
"Basta a simples leitura de tais declarações, em conjugação com o teor dos depoimentos das demais testemunhas inquiridas nos autos, para qualquer pessoa se aperceber, da relevância das mesmas, que as testemunhas merecem credibilidade e têm conhecimento direto dos factos que referiram, em especial quanto à existência de fortes indícios de todos os factos descritos na acusação e que foram considerados inócuos ou não indiciados pelo Meritíssimo JIC", assevera o procurador.
Por outro lado, o MP acusa o juiz de, em relação às outras testemunhas, ter ignorado as partes dos seus depoimentos que fundamentavam a acusação. "Mal andou o Meritíssimo JIC ao desconsiderar a importância e validade como meio de prova das declarações prestadas pelas referidas testemunhas quanto aos factos imputados na acusação", conclui o MP.
Segundo a acusação do MP, Abdessalam Tazi, que obteve estatuto de refugiado mesmo depois de ter sido detetado com um passaporte falso pelo SEF, deslocou-se várias vezes ao Centro de Acolhimento para Refugiados, no concelho de Loures, para recrutar operacionais para esta organização, prometendo-lhes mensalmente 1800 dólares (cerca de 1500 euros).
Utilizou, pelo menos, sete identidades falsas e viajou por vários países europeus. Quando entrou pela primeira vez em Portugal, em setembro de 2013, vinha com o nome de Pascal Dufour, cidadão francês, alegando que era perseguido politicamente pelo governo marroquino.
O arguido será julgado por estes crimes em Aveiro - para onde o processo será remetido -, pois foi nessa comarca "onde se consumou o crime de contrafação de moeda".
O MP aguarda agora a decisão da Relação, que não deve ser antes das férias judiciais. Em anteriores casos, como foi o do espião do SIS, acusado de ser agente da Rússia, Ivo Rosa foi duramente criticado.