Lena d'Água ainda tem bem presente o momento em que pela primeira vez ouviu, na rádio, a voz de António Variações, a cantar uma versão de Povo Que Lavas no Rio, um dos maiores clássicos de Amália. "Fartei-me de rir." Só pensava: "Mas o que é isto? Que doidice", recorda a cantora, que amanhã à noite, nos jardins da Torre de Belém, será uma das artistas a dar voz às palavras de António Variações, no espetáculo de encerramento das Festas de Lisboa, a cargo da Orquestra Metropolitana de Lisboa (OML), com a qual por estes dias se encontra a ensaiar..De todos os cantores presentes, Lena d'Água é a única contemporânea de António Variações, "a única que realmente o conheceu" e foi "testemunha próxima" do fenómeno. "Pertencíamos à mesma editora e estávamos ambos a gravar o nosso primeiro disco, pelo que nos cruzámos muitas vezes em estúdio. Uma vez fomos a um jantar da Valentim de Carvalho, no Sheraton, e acabámos a noite a dançar no Jamaica", recorda Lena d'Água, que guarda a memória de "uma pessoa amorosa, muito delicada e dedicada" aos seus amigos. "Foi uma convivência muito pontual e rápida, de pouco mais de um ano, mas que me marcou muito, como a todas as pessoas que com ele privaram.".E ao contrário do que a imagem pública poderia transparecer, "nada espampanante", pelo contrário, "era até bastante discreto" e com "um sentido de humor muito apurado". Quatro anos depois da morte de António Variações, a 13 de junho de 1984, Lena d'Água acabou por gravar uma versão de Estou Além, que depressa se tornou um êxito. Regressaria ainda à obra de António Variações no disco Tu Aqui, 1989, no qual interpretou cinco temas inéditos do artista. "Foi o irmão dele, o Jorge Ribeiro, que me telefonou, a dizer que tinha algumas cassetes com inéditos. Gravei alguns desses temas no meu disco e o António passou a fazer ainda mais parte da minha vida", conta..Nascida no início dos anos 80, a memória que Selma Uamusse tem de António Variações é bem diferente, mas nem por isso menos viva. "Lembro-me de o ouvir muito nas festas dos meus pais. Tenho muito presente a recordação de temas como Canção do Engate e Estou Além, que todos cantávamos, até na escola. Foi um período muito importante para a música portuguesa e o António foi uma das figuras maiores desse tempo", sustenta. Sente-se por isso "muito honrada, por ser uma das vozes das variações do António" neste espetáculo. Depois do primeiro ensaio com a orquestra, confessa estar "entre o nervoso, o medo e a euforia total", apenas por estar ali, por fazer parte daquele "naipe de cantores tão diferentes uns dos outros, mas todos com tanta alma, tal como a música do António Variações era"..Para muitos, como aconteceu com Paulo Bragança, foi Júlio Isidro quem deu a conhecer António Variações. E o fadista "nem queria acreditar" quando viu na televisão "aquela figura tão colorida, tão contrastante com o país, na altura ainda muito a preto e branco", que o fez sentir "uma atração automática". Mesmo assim e apesar dessa primeira impressão, prefere destacar "a profundidade do artista", que "numa única frase conseguiu resumir a alma de um país inteiro" (canta "todos nós temos Amália na voz, na voz de todos nós"). Apesar da atual unanimidade à volta de António Variações, Paulo Bragança faz questão de lembrar que nem sempre foi assim: "Ele já não conheceu o sucesso em vida e no início até foi muito criticado. Hoje tudo isso já foi esquecido, devido àquilo em que, muito justamente, se tornou, mas mesmo assim há que o dizer.".Variações em modo sinfónico.A ideia de fazer um espetáculo dedicado a António Variações partiu da vontade da Câmara Municipal de Lisboa de assinalar em grande um duplo aniversário redondo que acontece em 2019, os 35 anos da morte (a 13 de junho) e os 75 do nascimento do cantor (a 3 de dezembro).."Falámos logo da possibilidade de ser feito com uma orquestra, para mostrar um outro lado da música de António Variações", revela Luís Varatojo, diretor artístico do espetáculo, que "devia ter talvez uns 15 anos", quando, "por acaso", viu o cantor atuar ao vivo. "Foi no Pavilhão do Sacavenense, creio, não sabia quem ia tocar e quando entrei lembro-me de ver um tipo a vestir um fato-macaco prateado. Era o António Variações, que tocou o Toma o Comprimido.".Tema que, curiosamente, nunca chegou a ser gravado, apesar de tantas vezes tocado, ao vivo e na televisão. António Variações gravou apenas dois álbuns - Anjo da Guarda (1983) e Dar & Receber (1984) -, que bastaram para o tornar uma das maiores figuras da música portuguesa, deixando para a posteridade um conjunto notável de canções como Canção do Engate ou Estou Além, entretanto transformadas em clássicos, na sua voz e na de outros, como são exemplo os dois discos póstumos, de Lena d'Água e dos Humanos (2004), ambos feitos a partir das muitas gravações caseiras e maquetes que deixou inacabadas. "Tem de facto um repertório curto, mas quando entramos nele parece que estamos a mexer em ouro. E está quase tudo no alinhamento deste espetáculo", assegura Luís Varatojo..Os arranjos para orquestra ficaram a cargo de Filipe Melo, Filipe Raposo e Pedro Moreira. "Foi um trabalho muito inspirador, porque o universo musical do António Variações é muito forte", admite Pedro Moreira. O maior desafio, assinala, foi "tornar as canções em peças totalmente acústicas", mas ao mesmo tempo "mantendo o espírito original das mesmas, apesar da sonoridade totalmente diferente". Pedro já estudava Música quando, "ainda adolescente", ouviu pela primeira vez António Variações. "Gostei muito, por tudo nele ser tão diferente. Era muito arrojado e nada formatado, como viria a perceber mais tarde. Tudo isso era muito fascinante e ao mesmo tempo estranho, para um jovem estudante de Música, como eu era na altura.".Para o maestro Cesário Costa, que irá dirigir a OML neste espetáculo, a missão, nestes dias de ensaios, "é fazer que os cantores tragam o seu lado mais pop e não se preocupem com a orquestra. O meu papel é fazer a ponte entre esses dois universos", elucida. Para isso, foi também necessário "encontrar outra sonoridade", mas isso, lembra, "é o trabalho normal de uma orquestra em qualquer programa", embora "neste caso num estilo musical completamente diferente" daquele a que estão mais habituados..Em palco estarão também Ana Bacalhau, Conan Osíris, Lena d'Água, Manuela Azevedo, Paulo Bragança e Selma Uamusse, os cantores escolhidos para dar voz às palavras de António Variações, também ele já uma voz de todos nós..António & Variações.Torre de Belém, Lisboa 29 de junho, sábado, às 22.00 Entrada Livre