Raquel André, a atriz colecionadora de impossíveis

Raquel André mostra as suas coleções - de amantes e de colecionadores - enquanto reflete nesta necessidade de guardar memórias e histórias.
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Nos Açores, uma senhora coleciona tudo o que tenha ananases, seja um tecido estampado ou uma taça com forma desse fruto, um quadro pintado ou um candeeiro. Na Bélgica, há um colecionador de falos - um homem que não só investiga a representação do órgão sexual masculino através da história como tem em sua casa mais de mil objetos fálicos, incluindo arbustos esculpidos em forma de pénis. Há quem colecione bonecas, corações, perfumes em miniatura, tatuagens, cromos de futebol, super-heróis, discos de vinil. Uma menina de três anos coleciona carrinhos.

Raquel André coleciona estas pessoas todas. É uma colecionadora de colecionadores. Tem neste momento já 30 colecionadores. Encontra-os, visita-os, conversa com eles e filma estes encontros. No final, pede-lhes que lhe deem um dos seus objetos de coleção. É, geralmente, um momento de conflito. "Estou a pedir-lhes algo que é muito precioso. Há pessoas que me dão logo alguma coisa, outras pedem-me uns dias para pensar, às vezes tenho que assinar um documento a comprometer-me devolver aquele objeto", conta Raquel André, que vai apresentar a sua Coleção de Colecionadores, a partir de quinta-feira, no Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa, no âmbito do Festival Temps D'Images.

O espetáculo está em constante mutação. Vai crescendo à medida que Raquel vai colecionando mais colecionadores. "Nunca colecionei nada, mas sinto essa obsessão em relação a este trabalho, sei que fica mais rico se eu tiver mais pessoas", explica. Na verdade, o que lhe interessa não são os objetos mas as histórias que eles contam. É por isso que quando entrevista os colecionadores não filma os seus objetos, filma-os apenas a eles. Da mesma forma que na sua primeira coleção, a de amantes, em cada encontro tirava uma fotografia mas, na verdade, a fotografia era apenas o registo possível daquilo que estava a guardar: o encontro entre duas pessoas. Raquel André é uma colecionadora de impossíveis, coleciona o que não é colecionável: pessoas, encontros, afetos, memórias. Como guardar aquilo que vivemos? Esse é o grande desafio.

É difícil encontrar o princípio disto tudo. Ela fala de uma caixa de cartão cheia de cartas, encontrada no lixo em 2009. Guardou-a e passou meses a ler aquela correspondência, trocada por uma família entre Portugal e a Bolívia, nas décadas de 1970 e 80. As cartas deram origem ao seu primeiro trabalho com a memória e com o colecionismo, No Digital, feito em parceria com Tiago Cadete.

Em 2011, estava no Brasil a trabalhar e a fazer o mestrado em artes performativas. "Nessa altura eu já estava a fazer algumas performances que eram encontros em casas de pessoas que eu não conhecia, no final dos quais me fotografavam como se eu fosse íntima. Eram encontros super-fortes e decidi que tinha de continuar a fazer esses encontros e a guardar essas fotografias. Então, apercebi-me que isto era uma coleção e tornou-se o meu objeto de pesquisa." Os encontros já eram suficientes enquanto atos performativos, mas ela sabia que aquilo poderia ser material para um espetáculo. E foi assim que nasceu a Coleção de Amantes.

O espetáculo estreou-se em 2015 mas Raquel André continua a colecionar amantes (o objetivo é fazê-lo ao longo de dez anos). E não se torna repetitivo? "Continuo a ficar super-nervosa", garante. "Continua a ser um encontro entre duas pessoas, sem personagens, sem guião. Tenho algumas ferramentas e algumas perguntas-chave que sei que vão abrir portas para assuntos que me interessam. Temos um programa a cumprir que é tirar pelo menos uma fotografia. Mas tudo pode acontecer. Algumas pessoas já conhecem o projeto - há pessoas que vêm para me provocar o que também é interessante para mi m - mas continuam a aparecer pessoas que não sabem nada do projeto."

Neste momento, Raquel André já tem 137 amantes e vai apresentar também a Coleção de Amantes no Teatro Nacional, este mês. No dia 9, pelas 19.00, será apresentado o livro que resume um pouco desta experiência, com fotografias dos encontros e textos de Raquel André, Tiago Rodrigues (diretor do teatro e "amante" de Raquel André) e o ator e autor brasileiro Gregório Duvivier.

"É um trabalho que me escapa das mãos", diz, feliz Raquel André. "Seja nos encontros, que são super fortes, levo comigo questões para o resto da minha vida, como o próprio espetáculo. No final as pessoas vêm falar comigo e têm imensas questões. É tão forte o facto de um ato artístico criar a possibilidade de as pessoas se questionarem sobre relações, afetos, intimidade."

Para elas destas duas coleções, Raquel André tem em curso uma coleção de espectadores (no final dos espetáculos pede que lhe deem um objeto pessoal) que ainda não sabe muito bem como irá ser trabalhada e já está a planear a próxima coleção, de atos criadores, a apresentar em 2019. E também tem o projeto de transformar a sua coleção de colecionadores num filme documental.

Neste processo de guardar a memória e de perceber porque é que temos esta necessidade de colecionar coisas, Raquel encontrou duas pessoas que colecionam plantas: uma senhora que tem mais de 200 pés de camélia plantados no jardim e um senhor que tem um jardim de coníferas (um tipo de pinheiros). "Foi uma descoberta incrível", diz Raquel André. "Há alguém como eu, que coleciona coisas efémeras. As plantas crescem e morrem, eles tiram fotografias e documentam todo o processo mas as plantas morrem. Como os meus encontros com as pessoas."

Coleção de Colecionadores

De 2 a 12 de novembro

Coleção de Amantes

De 15 a 22 de novembro

Sala Estúdio do Teatro Nacional D. Maria II, Lisboa. Bilhetes de 6 a 12 euros

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