'Raiz feminista' dá Prémio Princesa das Astúrias a Siri Hustvedt

A escritora norte-americana Siri Hustvedt foi distinguida com o Prémio Princesa das Astúrias. "Uma das obras mais ambiciosas" foi a justificação do júri. Não poderia estar mais certo na razão.
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O júri reunido em Oviedo decidiu distinguir a escritora norte-americana Siri Hustvedt com o Prémio Princesa das Astúrias das Letras. Segundo a Agência Lusa, o comunicado da instituição destaca o facto de a obra da autora incidir nalguns dos aspetos que esboçam um presente "convulsivo e desconcertante, a partir de uma perspetiva de raiz feminista". E não deixou de referir que Hustvedt tem "uma das obras mais ambiciosas" no panorama literário atual.

Hustvedt nasceu em 1955 no Minnesota, de ascendência norueguesa, e tem publicado importantes obras ao nível da ficção, do ensaio e da poesia. É conhecida pela sua militância feminista. Doutorou-se em 1986 em Literatura Inglesa na Universidade de Columbia com uma tese sobre Charles Dickens. Especialista em neurociência e psicoanálise, elenca como autores de referência Kierkegaard, Emile Benveniste, Roman Jakobson, Mikhail Bakhtin, Freud, Lacan, Mary Douglas, Ricoeur e Julia Kristeva. A sua primeira publicação foi um poema na The Paris Review.

Os jurados também sublinham que, a partir de obras de ficção e ensaio, a autora mostra-se uma "intelectual preocupada" com as questões fundamentais da ética contemporânea e que, estando traduzida em mais de 30 línguas, contribui com o seu trabalho para o diálogo interdisciplinar entre as humanidades e as ciências.

A carreira de Siri Hustvedt começa em 1992 com um primeiro romance, De Olhos Vendados, publicado em Portugal três anos depois. Traduzida em mais de três dezenas de línguas, Hustvedt tem vários livros traduzidos em português. É o caso do impressionante O Mundo Ardente (2014), do elaborado Aquilo que Eu Amava, ou Verão sem Homens (2012).

A ausência mais marcante em língua portuguesa é o seu ensaio Mysteries of the Rectangle, onde escreve vários textos sobre os grandes mestres da pinturura: Goya, Vermeer, Gerhard Richter ou Joan Mitchell.

O Prémio Princesa das Astúrias das Letras foi concedido, em anos anteriores, a personalidades como Mario Vargas Llosa e Rafael Lapesa (1986), Gunter Grass (1999), Amin Maalouf (2010), Leonard Cohen (2011), Richard Ford (2016), Adam Zagajewski (2017) ou a escritora francesa Fred Vargas, entre outros.

Siri Hustvedt é casada com o escritor Paul Auster, também Prémio Príncipe das Astúrias das Letras de 2006.

O Prémio Princesa das Astúrias contava com 28 candidaturas.

Desvendar Nova Iorque com um casal de escritores

O DN publicou em outubro de 2005 um trabalho sobre o casal Siri Hustvedt e Paul Auster no momento em que ambos publicavam livros novos:

"Ao longo da história da literatura não faltam exemplos de casais de escritores. Havia Sylvia Plath e Ted Hughes, até ao suicídio dela, há outros e haverá muitos mais, mas, neste momento, existe um casal que tem uma especial dimensão ela, Siri Hustvedt, ele, Paul Auster.

Por coincidência, os dois publicaram recentemente um livro. Ela em Portugal - Aquilo Que Eu Amava -, ele nos Estados Unidos - The Brooklyn Follies. Sendo abordagens literárias diferentes e estilos muito diversos, ambos se dedicam nestes dois volumes a um mesmo tema, o da solidão humana perante o fim da vida. E fazem-no com um carinho que nos empurra para a leitura dos dois volumes sem qualquer problema; com uma análise de sentimentos profunda e a caracterização das suas personagens em tons pouco sépia e cores muito distintas; com um entendimento da dimensão humana muito para além dos limites da cidade onde os cenários acontecem; com uma curiosidade pela vida e uma sensibilidade inata que nem sempre se sente pulsar nos escritos dos autores de além-Atlântico.

Iniciemos por Aquilo Que Eu Amava. Há que começar por dizer que é um livro violentíssimo, com uma carga emocional que se vai adensando ao longo das suas três partes e que deixará o leitor sem defesas ao percorrer esse caminho.

A introdução que nos é oferecida na primeira parte não nos coloca na situação de ser sequer possível preparar as defesas pessoais perante a crueza dos relatos que a seguir virão. Pelo contrário, e em face das palavras escritas que nos permitem entrar num mundo que se reflete na pintura do corpo de uma das personagens (Violet) - e exibe uma certa carga erótica que só irá explodir mais de uma centena de páginas à frente -, acredita o leitor que o percurso deste volume não irá ser fácil e contemplativo.

Só que a escritora não pretende ficar-se pelas meias-tintas de um qualquer quadro que encanta um homem e impulsiona o princípio desta narrativa e recoloca-nos no verdadeiro universo de um retrato da comunidade artística nova-iorquina, dos seus desvarios intelectuais e das suas procuras a qualquer preço por novas estéticas e carreiras de sucesso. Siri Hustvedt não perdoa nada, larga as suas boas maneiras, esquece os ritos de iniciação a que o leitor deveria ter direito e o retrato que faz vai-se compondo com a ferocidade própria do ser humano que deseja abandonar ainda vivo a floresta desconhecida, onde está perdido.

A autora, com tudo isto, oferece-nos a sua visão deste mundo. Repleta de um erotismo que aflora suavemente nas folhas deste livro - que nem parece muitas vezes ser espelho de uma mão e de um cérebro feminino - e preenchido pela atenção especial que dá à prole masculina. Ajudado pelo maniqueísmo de certas emoções e pelo dobrar de realidades, resta ao leitor aceitar ou rejeitar a dominação.

É um livro de muitas emoções, decerto difícil de ser escrito e ao qual a autora voltou várias vezes até imprimir a quarta e definitiva versão. Siri Hustvedt impôs-se a si própria escrever na pele de um protagonista masculino e dizer aquilo que lhe ia na alma. Que mesmo tendo resultado numa análise pré-atentado do 11 de Setembro de 2001 e, por isso não condicionada, não é feliz, nem acaba bem.

Quanto a Paul Auster, estamos perante trezentas páginas ainda por traduzir mas que vêm na sua linha dedicada à introspecção e à aprovação dos valores que submetem os homens ao peso da verdade. É como um prosseguir do título Timbuktu e um passo em frente na metáfora que já era o País das Coisas Perdidas, um dos bons produtos da sua "adolescência" criativa.

Longe do dinamismo de O Livro das Ilusões e próximo de A Noite do Oráculo, The Brooklyn Follies é um rasgo a anunciar a sua maturidade como homem ao invés da exposição do escritor. As suas preocupações são outras e, abusando da vulgaridade, pode dizer-se que ele exibe - através dos seus personagens - as dores que sofre no corpo, as dúvidas sobre os valores que o questionam, analisa o passar do tempo sobre o físico e a forma como tudo se decompõe com o curso dos anos.

Não é que seja autobiográfico, muito longe disso! Talvez até se possa dizer que é a transposição da ideia que expôs num dos seus filmes - alguém que fotografava todos os dias a mesma esquina - para o seu próprio habitat Brooklyn. O dia-a-dia de quem se passeia pelos passeios e ruma pelas ruas para conviver com os restantes moradores do bairro. Em The Brooklyn Follies temos um protagonista que está condenado à morte e dá voz a um familiar.

É através dele, e de outras personagens, que Paul Auster nos pega no braço para percorrermos uma exaustiva galeria de fenómenos humanos com imensas histórias e particularidades. Que traduz o simples dia-a-dia dos habitantes dessa parte de Nova Iorque num folhetim que tem graça e é inspirado. E, assim, remata o labor de escritor nos últimos anos com um trabalho que questiona e desvenda sentimentos. Com Siri também fez!"

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