Quem quer ser pastor? Há uma escola que quer dar vida a uma classe em extinção
"Como sabem, estamos num clima temperado e há uma coisa que influencia muito a produção aqui em Portugal, que é o fotoperíodo. Sabem o que é isto?" As hipóteses vão sendo lançadas timidamente, em baixo tom, para responder às perguntas do professor Carlos Andrade, que há muitos anos leciona na Escola Superior Agrária de Castelo Branco. À sua frente tem 11 alunos, dos 18 aos 70 anos, entre os quais duas mulheres. Todos eles iniciaram nesta terça-feira a formação na escola de pastores, que decorre também em Viseu até fevereiro.
Não carregam um cajado na mão, nem boina ou chapéu na cabeça, como é habitual ver. Não para já. Por agora, os futuros pastores aprendem dentro de uma sala de aulas como qualquer outra, ouvindo e apontando todas as lições a reter. Antes de porem mãos à obra, é preciso dominar a teoria, crucial para os meandros atuais da profissão, em que entram fundamentos de gestão e até tecnologias.
O projeto é pioneiro em Portugal e nasce da necessidade de rejuvenescer esta classe, bem como de promover os queijos DOP (Denominação de Origem Protegida) da região centro - considerado um dos principais produtos endógenos do território nacional. Surge integrado no Programa de Valorização da Fileira do Queijo da Região Centro, que se candidata aos fundos comunitários do Centro 2020.
Ser pastor é uma profissão que se acredita que exista desde o período neolítico e que perdura até aos dias de hoje, embora tenha estagnado, à mesma velocidade com que as cidades foram crescendo. A evolução dos tempos deixou rasto na vida das aldeias e os mais jovens fugiram para as áreas urbanas, alimentando a desertificação de uma classe inteira, agora envelhecida.
Por isso mesmo, o número de candidaturas à escola de pastores caiu como uma autêntica "surpresa" para o coordenador do projeto, Luís Andrade, também ele professor na Escola Superior Agrária de Castelo Branco. As vagas disponibilizadas não passavam das 40, mas a quantidade de candidatos ultrapassou os 150. "Não só pessoas da região mas também do Algarve, por exemplo", conta.
Nem todos os que foram aceites ficaram matriculados. "Quando as pessoas se aperceberam de que era preciso estar aqui, de manhã à tarde, até fevereiro, desistiram. Porque grande parte delas continuam a ter de tratar o seu gado ou têm outra ocupação profissional", explica Luís Andrade. Atualmente, há 17 inscritos na formação, em Castelo Branco. No mesmo projeto que decorre em Viseu, são 19.
Às 09.02 da manhã, já com oito alunos na sala de aulas, o professor fazia tempo à espera de que os restantes chegassem. A aula estava marcada para as 09.00. Luís Andrade, que se prepara para um discurso de boas-vindas, justifica o atraso com a distância que vários alunos têm de percorrer todos os dias até à escola agrária. "Há uns que têm mesmo uma hora de viagem até cá", diz.
Na fila da frente, um dos alunos presentes, um senhor já de cabelos brancos aproveita a ocasião para deixar a mensagem: "Eu tenho animais e isto nem sempre corre como queremos. Posso ter de chegar mais tarde, às vezes." Como é o caso de Manuela Matias, de 50 anos, uma das duas únicas mulheres nesta formação. O local onde decorre não lhe é estranho: há cerca de 20 anos, foi ali aluna da licenciatura em Engenharia de Produção Animal. "Não era fácil", recorda.
Duas décadas voltadas, Manuela tem a sua própria exploração, com 140 cabras, onde se dedica quer à produção de queijo quer à produção de leite. "Toda a minha vida trabalhei na agricultura. Fui criada no campo e isto é o que mais gosto de fazer."
Na sala de aula, vai acenando constantemente, em jeito de confirmação, a tudo o que o professor vai explicando. Os anos de profissão deram-lhe quase todos os saberes necessários. Mas é importante "procurar acompanhar os tempos", por isso, decidiu inscrever-se na escola de pastores.
"Venho aprender novas coisas. Como em tudo na vida, a pastorícia vai evoluindo e a própria agricultura já não é o que era. Está já muito dependente das tecnologias, por exemplo. Quero aprender para apostar mais na minha produção", confessa.
"Comecei mal com as ovelhas", partilha o aluno Rúben Silva com o restante grupo de formandos. "Estava eu ainda às aranhas para andar, o meu pai tinha lá uns borregos à solta e havia lá um que era marado e vinha puxar-me os cabelos", recorda, fazendo todos rir. "E os cabritos ainda são piores", responde Manuela. Aos 18 anos, Rúben é o mais novo do curso que quer formar pastores.
A pastorícia não é um mundo novo para este jovem, que cresceu numa herdade com animais, "vacas e ovelhas". É de Évora, mas vive em Castelo Branco, onde está a integrar um projeto agrário numa herdade. Terminou o 9.º ano a esforço, porque desde cedo sabia que queria ir trabalhar no campo. Não tem dúvidas: "Quero fazer disto vida."
E pode mesmo ser uma peça vital na revitalização da profissão. O coordenador Luís Andrade lembra a urgência de reforçar esta classe, cujo envelhecimento "pode ter efeitos severos na produção de leite e queijo" em Portugal.
A exigência do ofício, para o qual o dia começa antes de o sol nascer, entre o frio e o calor extremos das estações e árduo trabalho físico, é uma das razões que faz que fique fora da lista de escolhas profissionais dos mais novos. "Ninguém pega neste tipo de profissão, que é dura, solitária e que dá pouco dinheiro", diz Tânia Gonçalves, de 36 anos, também aluna neste curso. Além disso, acrescenta, é uma profissão que "durante décadas esteve agarrada a um grande estigma", de iliteracia e pobreza. "Sempre que alguém dizia que o pai era pastor, a reação não era a melhor."
Mas "as coisas estão a mudar", acredita. E Tânia faz parte desta mudança, ao querer tornar-se uma das poucas mulheres numa profissão "maioritariamente masculina". A professora de Inglês e Português, do ensino secundário, planeia deixar as letras pelo trabalho no campo. Inscreveu-se na formação por uma questão "sentimental", empolgada pelas memórias de infância em que ajudava o avô a ordenhar vacas, mas principalmente "prática": ela e o marido - que também se candidatou à escola, mas não foi selecionado - têm uma quinta onde querem dedicar-se à atividade pastorícia. "Tudo o que tenho é empírico, vem daquilo que já vi fazerem e ouvi dizerem. Portanto, aqui venho capacitar-me tecnicamente", explica.
Um pouco à semelhança do que acontece com Luís Fevereiro, de 33 anos, para quem ser pastor é um sonho de criança. "As histórias que eu escrevia na primária eram sempre sobre terra, sobre a minha aldeia (Castelo Branco) e sobre os animais. Desde pequeno que sonho ter a minha própria produção", recorda.
O sonho ficou adiado e foi substituído por uma profissão "mais segura": atualmente, Luís é guarda prisional. Mas viu na escola de pastores a desculpa perfeita para começar a concretizar o que deixou nas entrelinhas das composições da escola. A família já tem uma quinta com cabras e pretende adquirir "todo o conhecimento possível" para "ajudá-los a saber o que estão a fazer bem ou mal".
Estão previstas na formação 560 horas, divididas entre 150 de componente teórica e 410 de prática - que decorrerá em explorações agropecuárias dos concelhos de Castelo Branco, Fundão, Penela, Oliveira do Hospital, Gouveia e Viseu. O projeto prevê, no final, a atribuição de bolsas a 20 dos melhores alunos do curso, no valor de cinco mil euros, como contributo para o início da sua atividade como pastor.
O coordenador Luís Andrade espera que este seja apenas "o projeto-piloto de algo mais ambicioso", para numa segunda oportunidade abranger o curso a todos os que ficaram de fora das vagas disponíveis.