Quem disse que, numa relação duradoura, o amor não basta, acertou. Pelo menos, no que toca à história destes professores. A dada altura, a paixão pela arte de ensinar tornou-se insuficiente para a sua sobrevivência, acabando por desistir do sonho que cultivavam desde crianças. Márcio trocou o ensino pela construção, Carla por uma empresa de embalagens de cartão e José pela publicidade. Voltariam já amanhã... se tudo fosse diferente. Os que ficaram, dizem, gabam-lhes a sorte: 84% dos docentes escolheria aposentar-se agora.."Não imaginava que ser professora era isto".A sorte que tu tens", ouviu vezes sem conta, quando anunciou que iria desistir. Carla Freitas, 41 anos, não teve "um único colega que a aconselhasse a voltar" às salas de aula. Largou o sonho de ser professora ao final de uma década de profissão e garante que "muitos outros fariam o mesmo, se pudessem"..As estatísticas comprovam-no. De acordo com um relatório encomendado pela Federação Nacional de Professores (Fenprof) à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (FCSH), em 2018, 84% dos docentes inquiridos (18 420) admitia ansiar pela reforma antecipada, caso esta não implicasse qualquer penalização. Por cansaço ou por desilusão, o amor que um dia foi hoje já não o é..Há "uma magia" em ser-se professor, diz Carla Freitas. Não sabe bem se é pela oportunidade de ver, na primeira fila, a vida de tantos jovens que começa a fermentar ali, nas salas de aulas, ou por sentirem que o mundo pode ser melhor dependendo do que se faz dentro delas. Talvez por isso, a professora "sempre quis ser professora", de Matemática. Nem dez anos passados desde que o relógio começou a contar, nas escolas de Valongo, no Porto, a magia que tanto apregoava "começou a desaparecer".."Não imaginava que ser professora era isto", confessa. Fascinava-a a ideia de ter na mão a capacidade de ensinar a crianças e jovens que de outra forma poderiam não ter acesso àquele conhecimento. No entanto, neste momento, "ser professor não tem nada que ver com dar aulas", "cada aluno é um número, um programa que temos de cumprir, não importa se falamos de um com mais ou menos dificuldades". Quando Carla chegava às reuniões, percebeu que não havia tempo para discutir nomes nem contextos. Havia tantas frações, equações e outras contas para prestar ao final do ano, que nenhum professor poderia dar-se ao luxo de descansar os olhos dos números e olhar para os alunos à sua frente, lamenta..E "todos os anos parece que tudo muda novamente, há um novo programa, mais burocracia", ficando sem tempo para "assimilar sequer o que tinha mudado no ano anterior". Os seus colegas mais velhos, conta, recordam outra época, em que "havia tempo para consolidar as bases". "Antigamente, o 1.º ano primário servia para aprender a ler e a escrever, mais nada. O 2.º ano dava para consolidar tudo isto. O nosso programa atual diz que as crianças têm dois anos para aprender a ler e a escrever, mas vão olhar para um livro de 2.º ano e vejam se é realmente para alguém que ainda não saiba ler. No 1.º ano aprendem sobre dinheiro, não têm noção nenhuma do que são vírgulas em números e têm de falar sobre cêntimos", denuncia. As consequências, diz, "são devastadoras": as crianças "ficam desanimadas, tristes, por não conseguirem atingir as metas do programa". Eles "e nós, professores"..Devagarinho, ano após ano, "aquele bocadinho que passava dentro de uma sala de aula, a fazer o que mais gostava, deixou de compensar o resto", conta. Convicta de que poderia fazer a diferença num lugar onde o plano curricular não fosse "uma prisão", durante dois anos a professora de Matemática ainda experimentou o ensino especial, para o qual se formou entretanto. "Aqui, então, foi realmente um choque", lembra. Carla conta a impotência que sentiu e a pena que teve "daqueles pais", cujos filhos "eram largados ao abandono quando chegavam à escola". Porque "a inclusão nas escolas é uma mentira", as crianças "estão lá, mas não estão incluídas", até porque" não temos tempo para as acompanhar" garante..Ainda que a lei preveja medidas de inclusão escolar, pelo menos 30% dos estabelecimentos de ensino não estão a aplicá-la. Em 2018, o governo substituiu a lei da Educação Especial pela Educação Inclusiva, que passa a ser para todos e não especificamente para estudantes com necessidades especiais. Mas um relatório da Federação Nacional de Educação (FNE), divulgado em dezembro de 2019, mostra que a maioria dos professores e educadores não estão preparados para aplicar o diploma. Em grande parte, confessam, por não terem tempo de preparar os recursos para a sua concretização.."Deixa-se as crianças à sorte do professor que lhes calha. Porque ou os professores se predispõem a fazer mais do que o programa estipula ou os alunos ficam esquecidos", conta Carla Freitas. Ainda de acordo com o estudo da Fenprof e da FCSH, as respostas dos inquiridos mostram que quanto maior a perceção de criatividade, menor o índice de exaustão emocional. "E os profissionais não estão a encontrar a compensação que idealizavam, seja ela material ou emocional", acrescenta Vítor Godinho, membro do Secretariado Nacional da Fenprof. Atualmente, "a profissão é vista com grande desânimo" e é já "desesperante ver o cenário de apatia nas salas de aula". Por isso, não o surpreende que "a partir do momento em que encontram uma alternativa, melhor ou não retribuída, acabem por sair"..A alternativa chegou para Carla, em 2015: uma oportunidade num parque de festas para crianças. A professora de Matemática queria uma vida diferente, um trabalho mais gratificante, por isso, experimentou. Mas não largou de imediato o ensino: durante uns meses, foi conciliando os dois trabalhos - durante a semana, escola; ao fim de semana, o outro. Ali, "tinha a parte boa com as crianças, que já raramente conseguia ver no ensino". Por isso, acabou mesmo por desistir da profissão e dedicar-se a tempo inteiro ao antigo part-time..Ao final de cinco anos, trocaria novamente de vida, para ingressar na empresa do marido e do sogro, dedicada à distribuição de embalagens de cartão. Ainda ponderou voltar ao ensino, mas na altura "já tinham fechado os concursos". No entanto, tudo pesado na balança, a conclusão é uma: "Se soubesse o que sei hoje, não iria para o ensino."."O que fui fazer à minha vida?".Não fosse a receção feita pelos alunos correr tão bem, Márcio Ferreira teria desistido da profissão enquanto conduzia o seu Renault 5 a caminho de Cinfães. Foi lá que mais gostou de exercer, motivado pelo desafio de mudar a vida de alunos desfavorecidos que, antes de se cruzarem consigo, jamais pensariam seguir para o ensino superior. O sonho de ser professor durou mais uns anos, mas com ele veio o cansaço, a instabilidade, ao mesmo passo que a família crescia. Márcio fez a viagem de volta a casa para nunca mais voltar. Aos 43 anos, já não é professor..O primeiro trabalho foi num colégio, na sua zona de residência. Em 2003, concorreu à escola pública e, para sua surpresa, é colocado, em regime de substituição, em Cinfães do Douro. Rumou norte acima, mas apenas para lecionar, porque teria de dividir a vida entre lá e Águeda, onde continuou a viver com a mulher, devido à responsabilidade que tinha de cumprir na junta de freguesia..O sol raiava lá fora como se fosse verão, ainda que estivéssemos em novembro, dia 11 especificamente, dia de São Martinho, lembra. Foi quando arrancou para Cinfães, uma jornada feita em medo, ansiedade e, depois, lágrimas, independentemente da paixão que levava na bagageira. "No caminho para lá, quando rasguei a serra de Montemuro no meu Renault 5, pensei "o que fui fazer à minha vida" e chorei que nem uma criança. Caí na realidade: estava ao lado de casa, podia ir para as aulas a pé, e vou sujeitar-me a fazer mais de 200 quilómetros todos os dias?", conta. Mas "se para lá foi a chorar de tristeza, no regresso o caminho foi a chorar de alegria". Era dia de festa na escola e foi tão bem recebido que sentiu imediatamente a compensação do sacrifício..O conto quase nos faz esquecer o caminho que a sua vida tomou. Sabemos o fim - algo foi maior do que a paixão -, não como lá se chegou. Ano após ano, foi sendo colocado em outras escolas como professor de Desenho, Educação Tecnológica e de Oficinas, mas acabava sempre por pedir transferência para Cinfães. "Comecei a perceber que era útil por lá", conta. Ficava com turmas de 2.º e 3.º ciclos de percursos curriculares alternativos, "crianças que de alguma forma ficaram postas de lado" e "sem ambições"..Márcio era o "professor-amigo", que lutava por "criar uma família motivada dentro da sala de aula", um desafio "num dos concelhos mais pobres do país". As carências estavam emergentes, muitos destes alunos não pensavam sequer terminar o ensino obrigatório, mas o ex-professor lembra que "há dois ou três que acabaram até por seguir para o ensino superior". "Consegui", desabafa..Em 2012, a estrada de quilómetros já pesava, no corpo, nas despesas e no tempo que não lhe restava ao final do dia para estar com a família, quando esta estava a crescer: neste ano, torna-se pai do Lourenço. "O trabalho não acabava quando eu saía da escola, tinha de ir preparar aulas para casa", lamenta. A isto juntava-se uma carteira mais vazia, incompatível com as despesas do dia-a-dia. Márcio recebia 1070 euros por mês e gastava uma média de 450 euros só nas viagens. "A minha esposa trabalhava no privado, a ganhar menos do que eu (800 euros) e conseguia aferir mais dinheiro do que eu nas nossas contas mensais", conta..Decidiu reduzir a área de concurso, para ficar mais perto de casa, mas "foi um ano complicado no ensino", com o "fim de espaços pedagógicos, aumento da idade da reforma e do número de alunos por turma", o que reduziu o número de professores colocados..Começou a procurar trabalho fora da área, em empresas de construção civil - aproveitando a experiência que ganhou antes de ingressar no ensino superior - e em supermercados. Acabou sem uma única resposta positiva. Em outubro de 2012, arrancou no carro em direção à Suíça, a convite de um amigo que "prometeu ajuda incansável", mesmo sem emprego, "numa época difícil como é o inverno lá, muito rigoroso, onde nem há oferta de trabalhos mais pesados"..Voltaria a 6 de dezembro para Portugal, para passar o Natal, e só regressar em março de 2013, "quando começaria a surgir muito trabalho novamente". Márcio tinha concorrido a uma empresa que procurava um arquiteto paisagista, "que falasse alemão e que soubesse soldar". Foi chamado a uma entrevista e ficou, primeiro com contrato de três meses. Foi ficando, mas "sempre a achar que iria regressar amanhã a Portugal".."Passei anos sem tirar a roupa da mala, não sei bem explicar porquê", conta. "Tenho muitas saudades do ensino. Se me garantissem amanhã "Márcio, tens trabalho na tua área, para ficar efetivo, relativamente perto de casa", eu fazia as malas e ia embora. Sou extremamente infeliz aqui, mas cá continuo pelas questões financeiras. Embora o dinheiro não pague tudo, e não paga a minha felicidade, paga a estabilidade para a minha família", diz..E "assim se perderam muitos professores". Para si, nesta história só há derrotados: "Quem perdeu verdadeiramente foi o país, não tenho a menor dúvida." O que falha, afinal? O sistema de colocações, diz, que obriga tantos a percorrer quilómetros, a mudar de vida todos os anos.."Estamos a mais para o sistema, somos um fardo".Houve uma altura em que José Figueira viu "vários pequenos negócios a abrir por professores que tinham desistido da profissão". Coincidiu com a sua saída do ensino, em 2012, quando uma reforma curricular dividiu em duas a antiga disciplina de Educação Visual e Tecnológica (EVT), a mesma que lecionava. Foi "por gosto" que o docente de 41 anos começou a sua carreira e por desgosto que acabou por desistir da mesma..Quando entrou na primeira escola onde foi professor, em Viseu, de onde é natural, "não se falava sequer em abandono", falava-se era "em negócios paralelos". Naquela época, conta, "o ensino era um part-time para os professores", depois vinha o resto, "as suas empresas, os seus trabalhos noutras áreas"..Entretanto, o abandono começou a ser palavra de ordem e parte destes profissionais dedicou-se a outros negócios, como se tornou o seu caso. "Foi uma debandada o que aconteceu" com a revolução de EVT. De 2011 para 2012, Portugal perdeu 11 778 docentes, do pré-escolar ao ensino secundário, aproximando-se dos números apenas registados anteriormente em 1997, de acordo com dados da Pordata..As mudanças pisaram o destino de vários professores, mas José ainda conseguiu ficar colocado. Contudo, a incerteza de não saber onde estaria, se perto de casa se a quilómetros de distância, e como estaria no ano seguinte, falaram mais alto do que a vontade de continuar. "Estamos a mais para o sistema, somos um fardo. Por isso, temos de chegar a uma altura e optar: ou a felicidade ou o ordenado", diz. Optou pela estabilidade - com a idade, as responsabilidades são outras - e abriu a sua própria empresa de publicidade, em Viseu. Se é feliz? Isso "é outra história". "O ensino faz-me muita falta e se me pedissem para voltar amanhã, com todas as condições para mais estabilidade, eu voltaria", garante..Ainda hoje, quando a pergunta surge, José não hesita: "Qual é a minha profissão? Digo que sou professor.".Mais vagas, mas menos professores.Numa estimativa feita através da listagem de candidatos ao concursos de docência desde 2009 até agora, retirando aqueles que entretanto vincularam e que estão a concorrer, "o número de desistentes andará ali na ordem dos 15 a 18 mil". Quem o diz é o membro do Secretariado Nacional da Fenprof, Vítor Godinho. Mas a tendência é que este número diminua, diz, "não porque as condições de trabalho melhoraram", mas porque "agora começa a ser uma área onde há oferta de emprego, subtraindo todos os que desistiram da docência e os poucos novos candidatos"..Ao quinto mês de aulas, desde o arranque do ano letivo, ainda se regista falta de professores em várias escolas espalhadas pelo país. No final do ano passado, a Fenprof estimava haver 20 600 estudantes afetados, em disciplinas como Inglês, Geografia, mas principalmente Informática. O problema mostra-se mais crítico nas cidades de Lisboa e Faro, onde as rendas altas afugentam candidatos e colocados, muitos obrigados a sobreviver em parques de campismo..docentes informática 2 Infogram."As condições profissionais estão a piorar", alerta Vítor Godinho. A falta de professores leva a que as escolas "reinterpretem os quadros legais e sobrecarreguem o horário dos docentes" e esta "é uma profissão cada vez menos apetecível". Algo que já se faz sentir no início da reta a caminho da docência: neste ano letivo, o número de colocados em cursos superiores de educação sofreu um ligeiro aumento, mas entre os 38 cursos a nível nacional ficaram sem uma única vaga preenchida, ainda havia dois da área. Numa classe cada vez mais envelhecida, em que só cerca de mil estão abaixo da faixa etária dos 30, "isto é uma preocupação", acrescenta o membro da Fenprof.."Isto chegou a um ponto de tal ordem que só a articulação de várias coisas é que conseguiria resolver o problema", entre elas "o rejuvenescimento da profissão, que obviamente se cruza com o da aposentação", diz. Segundo Vítor Godinho, "é preciso criar um programa de aposentação para tirar das escolas os professores cujo cansaço já não lhe permite dar o melhor da escola", o que "sugere àqueles que se candidatam à docência a oportunidade para encontrar um emprego com maior estabilidade, com abertura de lugares de quadro". "Porque não basta dizer que há emprego, tem que haver emprego nos quadros", frisa..Este conjunto de medidas "não serviria só a professores, serviria principalmente a alunos e ao ensino português", hoje em descrédito. "Antes, o que os pais queriam é que os filhos fossem à escola, para se instruírem. Mas agora há uma certa desconfiança em relação à escola, não vendo nela as oportunidades que pode valer. Infelizmente, as famílias cada vez mais atribuem uma importância menor à escola no que diz respeito à ascensão social" lamenta..Além disso, os jovens "já não chegam à escola como há uns anos, com tantas fontes de conhecimento, que coloca dificuldades aos professores sobre como credibilizar aquilo que estão a dizer face ao que eles ouvem e pesquisam na internet". A própria postura do aluno relativamente à aprendizagem "é hoje mais complexa" e "tudo é mais penoso para um professor". Face a este cenário, sublinha Vítor Godinho, "o rejuvenescimento é absolutamente fundamental".