Quantos dos independentes são, afinal, mesmo independentes?

Dos 19 presidentes de câmara eleitos por movimentos independentes só dois não tiverem quaisquer ligações partidárias. Dos outros 17 eleitos, nove vieram do PSD, sete do PS e um da CDU.
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Até aos 53 anos nunca estive ligado à política. Achava que os partidos não eram solução, mas não saía disso. Até que no Natal de 2012, à mesa, num grupo de amigos, tudo gente ligada à atividade económica, nenhum de nós tinha passado pela política ou tinha ligações a partidos, a conversa caiu no que estava mal, no que deveria ser feito [na Marinha Grande]... aquela conversa normal de quem está de fora e só fala. Foi aí que dissemos: "falamos, falamos, mas não fazemos nada. E se criássemos um movimento de independentes, se tentássemos mudar as coisas?" E olhe... fomos para a Net procurar informação, saber o que era preciso fazer, foi aí que encontrámos a AMAI [Associação Nacional dos Movimentos Autárquicos Independentes]... telefonámos, eles ajudaram-nos, explicaram o deveria ser feito. E foi assim que nasceu o movimento", explica Aurélio Ferreira, 60 anos, empresário, formado em engenharia de mecânica e materiais.

E depois? "Depois foi preciso meter mãos à obra", diz o novo presidente de câmara da Marinha Grande, "e acho que aqui a nossa experiência de empresários foi importante: planeamento e olhar para a frente, e oito meses depois [as autárquicas foram a 29 de setembro de 2013] estávamos a disputar as eleições. Fui eleito vereador nessa altura, há quatro anos passámos para dois vereadores e agora, à terceira, foi de vez: ganhámos a câmara, somos três, e também a Assembleia Municipal. Sendo que desta vez juntámos o nosso MpM (Movimento pelo Concelho) ao +Concelho [movimento independente que em 2017 obteve quase 1300 votos], daí o +MpM".

Em 45 anos, é a primeira vez que a Marinha Grande não vai ser gerida por socialistas ou comunistas. E esse passado, acredita Aurélio Ferreira, pode ter sido decisivo para a mudança. "As pessoas estavam cansadas do mau desempenho, destes anos todos. Creio até que eles [PS e CDU] ainda não se aperceberam bem do impacto do que aconteceu". Já falou com as pessoas do PS e da CDU? "... já, já falei com eles. Há um bocadinho de azia, mas não tenho culpa disso. Se a abstenção aumenta nas eleições, e falo de forma geral, de quem é a culpa? A culpa é de quem está na política. E os movimentos independentes surgem porquê? Só aparecem porque há desencanto com a política, com os políticos. Se tudo estivesse bem não havia candidaturas independentes nem as pessoas escolhiam quem escolhem".

"E sabe o que me apoquenta? O 'laissez faire, laissez passer', o vai acontecendo sem que nada aconteça. E se nada se fizer também nada acontece a quem nada faz. Apoquenta-me isto... se a câmara só executar 35% do seu orçamento o que acontece? Nada! Ninguém é penalizado, o salário está lá no final do mês quer cumpra quer não cumpra. E quem cumpre, quem faz? Também não acontece nada, não se beneficia quem cumpre. Se eu, na minha empresa, não cumprir o planeado, perco clientes, perco credibilidade, perco dinheiro... e sem dinheiro não há empregos", afirma o novo presidente.

O caso da candidatura de Aurélio Ferreira, sem passado político nem apoios de partidos, é substancialmente diferente dos restantes 18 presidentes de câmara eleitos por movimentos independentes, até mesmo de Rui Moreira, que apesar de não ter histórico de militância partidária, concorreu à câmara do Porto com o apoio do CDS e da Iniciativa Liberal. São os dois independentes mais independentes. Dos outros 17 eleitos, nove vieram do PSD, sete do PS e um da CDU. E o "vieram" tem tradução simples: foram de partidos ou já estiveram em listas partidárias em eleições.

"Divergências entre estruturas locais ou mesmo entre locais e nacionais, desilusões pessoais: "como não posso ir pelo partido vou independente"... há vários caminhos de "fuga" quer aos partidos quer à lei da limitação de mandatos ou até, nalguns casos, regressos. Não se esqueça que este fenómeno ganhou expressão a partir de 2013 e que a lei [candidaturas de Grupos de Cidadãos Eleitores] para as freguesias é de 1976 e para as câmaras é de 2001", recorda Teresa Ruel, investigadora e professora de Ciência Política no ISCSP-UL.

"Uma lei que pretendeu abrir portas, acabar com o monopólio dos partidos, mas que também serve, nalguns casos, para os partidos irem às eleições, dizendo que apoiam esta ou outra candidatura, quando percebem que não têm capacidade para desafiar os independentes. E há também o contrário, movimentos independentes absorvidos pelos partidos como é o caso de São Vicente, na Madeira. O presidente que já tinha sido eleito por duas vezes, por um movimento independente foi a eleições, agora, pelo PSD e pelo CDS. São as mesmas pessoas, o que mudou foi a sigla", explica Teresa Ruel.

E 19 eleitos é pouco? "É... é pouco. Não tem expressão [passar de 17 para 19 câmaras] quando havia uma tendência de crescimento. Mas também há outro fator que devemos ter em conta: o dinheiro, o que custa arriscar uma candidatura independente. Quem não tem dinheiro dificilmente arrisca, não há aqui apoios partidários, e mesmo com dinheiro deve-se pensar se as pessoas estão dispostas a arriscar na incerteza. Há nas candidaturas independentes um risco acrescido".

Henrique Bertino, ex-militante comunista, que em 2017, como candidato independente retirou a câmara de Peniche ao PCP [que nesse ano perdeu 10 autarquias] e que renovou mandato nas últimas eleições autárquicas, novamente sem maioria, não está "muito preocupado com os entendimentos. Tendencialmente será com o PS" cujo candidato teve "uma conduta digna na campanha eleitoral. Já a CDU foi um bota abaixo o tempo tempo... e o PSD igual".

"Estes quatro anos não foram fáceis. Levei com uma oposição unida de quatro vereadores de três partidos. Surpreendeu-me o bloqueio. Era mais uma questão pessoal do que política. Foi duro, muito duro. Tentaram arrastar as coisas, pressionar, provocar desgaste. O que é certo é que a câmara estava pior do que eu imaginava, a mudança teve que ser maior do que suponha. Tivemos que trabalhar muito para recuperar o atraso. Fizemos uma pequena revolução", revela o reeleito presidente pelo movimento Grupo de Cidadãos Eleitores por Peniche.

O agora independente, que saiu do PCP para se "libertar. Já não me sentia bem", garante nunca ter querido "destruir a CDU. Nunca quis nem quero, mas há uns que não perdoam por ter saído, outros que não os tivesse trazido. Os partidos são vítimas das pessoas, é isso". E sente-se independente por isso? "Não só por isso... a campanha, esta e a de 2017, foi paga por mim. Deixei de ter ligações a partidos".

"Tenho legitimidade para dizer, olhe como dizia o outro: "deixem-me trabalhar". E até lhe digo, voltei a ser candidato porque sabia que as pessoas ficariam revoltadas comigo se não o fizesse, porque ganharia o PSD. E daqui a quatro anos se tiver saúde e força voltarei. Sou forte, sabe... não viro às costas à luta. Se for preciso, agora espero que não seja, não hesitarei em pedir novas eleições. Peniche precisa de desenvolvimento, não de bloqueios".

António Camilo, presidente da Junta de Freguesia da Golegã eleito em 2013 e 2017 nas listas do PS, derrubou José Veiga Maltez, histórico autarca socialista que geriu os destinos do concelho durante 20 anos [de 1997 a 2013 e depois de 2017 a 2021] e que se candidatava a mais quatro anos. "As pessoas andam fartas dos partidos políticos. Fui incentivado a candidatar-me por amigos, pessoas conhecidas... e cresceu em mim essa motivação, mas só iria num movimento independente. E foi o que aconteceu". Estava desiludido com o PS? "A política não é um emprego. Fui durante 14 anos dirigente do Futebol Clube Golganense, sempre estive ligado ao associativismo, e sei dizer-lhe que o futebol é coisa muita mais séria que a política, há altruísmo". A candidatura de um ex-autarca PS com apoio do PSD é uma candidatura independente? "Eu sou independente, nunca fui militante. Na minha lista [2021ÉoAno] havia pessoas ligadas a outros partidos, simpatizantes do PSD, da CDU, do PS e do CDS. Mas, por exemplo, na lista do PS... o candidato à Assembleia Municipal era o líder do CDS aqui. Parece-lhe estranho?" ... Um bocado, sim. "Parece a pré-época do futebol, não é?"

Manuel Cordeiro, que diz "nunca ter tido grande inclinação política nem sequer desejei ser presidente de câmara" e que foi candidato nas listas do PSD em 2009 e militante por breve tempo - "talvez um ano e pouco, saí em 2011" - foi a votos com apoio do PS e do CDS e voltou a ganhar a presidência da câmara. Este ano já contava com a vitória, mas em 2017 foi diferente. "Nunca se viu tanta gente na praça, até houve uma pessoa que se aproximou de mim com um quadro que dizia:"Chegou o 25 de Abril à Pesqueira". Com José Tulha [presidente de câmara eleito pelo PSD] havia um marasmo muito grande. E isso mudou".

O reeleito autarca, numa câmara que só teve quatro presidentes em 45 anos, e dois deles pai e filho, afirma que "seria redutor candidatar-me por um partido. Tive esses convites, do próprio PSD, mas recusei. E ter apoio do PS e do CDS não faz diferença, é uma decisão [deles] pragmática". Se lhe oferecessem apoio logístico ou dinheiro não aceitaria? "Não, não aceitava. E nem sequer precisava. Agora em 2017 avancei com o meu dinheiro". Só não percebo o apoio do CDS que também foi a votos em coligação com o PSD... "É uma coligação só de nome. O líder local queria apoiar a minha candidatura, mas a direção nacional decidiu outra coisa. E ele demitiu-se quando soube disso".

A "Batalha é de Todos" é também de Raul Castro, deputado socialista, 72 anos, que regressou [foi presidente entre 1989 e 1997 em listas do CDS] e venceu agora o PSD. Nos últimos anos, desde 2009, foi presidente de câmara em Leiria. Saiu em em 2019 para ocupar o lugar de deputado. É centrista ou já foi e é agora socialista? "Nem uma coisa nem outra. Toda a gente sabe que sou independente. E aqui na Batalha não há questões ideológicas, há é que resolver problemas, ter a capacidade de conseguir resolver".

O "novo" presidente afirma que a "vantagem de ser independente é poder agregar pessoas que não votariam em escolhas partidárias. O protesto silencioso de que muitas vezes se fala. A maioria absoluta que tive é também isso e o facto das pessoas me conhecerem, saberem do que sou capaz, de estar virado para as pessoas. Em 2009 quando me convidaram para Leiria tinha uma condição: sou eu que faço as listas para a câmara e para as juntas. Inicialmente recusaram...mas depois vieram ter comigo a dizer que sim, que aceitavam. O que aconteceu? Ganhei as eleições".

Ricardo Nascimento já vai para o terceiro mandato. Entre 1993 e 2013 foi deputado na Assembleia Municipal da Ribeira Brava pelo PSD e depois presidente de câmara, mas "depois [em 2017] disseram-me que não contavam comigo. E eu gostava mais da terra do que do partido. Por isso, fui candidato pelo Ribeira Brava Primeiro como independente. Um movimento nascido na terra, por pessoas do próprio concelho". Independente? Mas foi com apoio do CDS, do PPM do MPT e do PDR... "Sim, independente. Esses partidos olharam para o concelho e perceberam que era uma mais-valia apoiarem-me". E agora em 2021 voltou a ter o apoio do PSD, aliás anunciado em 2020, e manteve o do CDS... "O Miguel Albuquerque mostrou-se interessado em apoiar-me e além do mais as relações com o governo regional foram de excelência". Parece um namoro, um regresso ao PSD... "[riso]... Isso são outras águas. Não tenho qualquer filiação, mas sempre fui social-democrata". Um independente social-democrata? "Sim, pode ser isso..."

Décio Pereira, que foi presidente de junta na Ribeira Seca pelo PSD de 2005 a 2013, quebrou os laços com o partido e foi a votos pelo movimento Dar Vida ao Concelho logo nesse último ano. E ganhou, nessas e nas duas eleições seguintes. "Tivemos que trabalhar muito mais, houve menos colaboração das entidades regionais, maior pressão. Mas digo com orgulho: somos das poucas câmaras que não deve nada a ninguém e a terceira ou a quarta do país nos pagamentos, um dia é o máximo de tempo".

O autarca que cumpre agora o seu terceiro mandato à frente da câmara da Calheta não se sente "incomodado" pelo regresso do seu ex-partido. Nas eleições deste ano, Décio Pereira que voltou a conseguir maioria, teve o apoio do PSD. "Quero acreditar que [José Manuel Bolieiro, líder do governo regional açoriano] foi genuíno. Espero que tenhamos a devida atenção, que não tivemos na justa medida nos outros mandatos. Começaram a respeitar-nos". Parece o PSD a aproximar-se agora que está no último mandato... "parece... mas cá estarei para apoiar os que me apoiaram".

artur.cassiano@dn.pt

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