Miguel Agostinho: Quando para o baile e a saída de um artista é emigrar para França
O bisavô tocava harmónios, o avô concertina e o pai seguiu com o acordeão pelas festas da região de Castelo Branco. Todos tocavam "de ouvido".
Miguel, 42 anos, seguiu as pisadas da família, aprendeu a tocar em casa na infância, mas formou-se como músico no Conservatório Regional de Castelo Branco para poder também lecionar.
O facto de ser músico profissional e de sempre ter vivido da música não lhe garante apoio do Estado enquanto artista.
"Recebi apenas um pequeno apoio, no ano passado, durante seis meses, mas como trabalhador independente que viu a sua atividade parada, bloqueada pela pandemia, não como artista, em específico. Daí nada! Não vi nenhuma porta aberta nesse sentido para mim", contou o acordeonista, em entrevista à Lusa.
Pela mão de um amigo encontrou trabalho nas obras públicas de França, destino tradicional de emigração de uma grande parte das populações do interior do país.
"Vivia totalmente da música. Paralelamente às festas, dava aulas de música. Com esta situação da pandemia, as coisas tornaram-se complicadas. Vimos a nossa situação parada de um dia para o outro", assumiu.
Destaquedestaque"Há mais de um ano que não tenho um cêntimo de rendimento da música, que não passo uma fatura, que não faço uma festa"
Dos contactos que tinha em França, onde atua para as comunidades portuguesas há mais de 20 anos, surgiu inicialmente a ideia de aí desenvolver um projeto para uma escola de música. Porém, também em França a pandemia alterou as oportunidades.
"Houve um amigo que me convidou para trabalhar com ele e tenho estado a trabalhar em França numa área que não tem rigorosamente nada a ver com a música, mas pelo menos mantém-me ocupado e vou ganhando algum dinheiro, porque as despesas mantêm-se, os impostos mantêm-se também. Tenho de continuar a pagar os meus impostos, mesmo sem ganhar", afirmou.
A última faturação que fez como músico foi em fevereiro do ano passado: "Há mais de um ano que não tenho um cêntimo de rendimento da música, que não passo uma fatura, que não faço uma festa".
Além de tocar músicas tradicionais do cancioneiro popular português e temas de outros artistas, Miguel Agostinho compõem e tem discos gravados. Entre os originais que editou, a música "Sou Beirão" retrata na letra o que era ainda um caminho que não imaginava traçar: "Sou da Beira, sou Beirão/Deixei cá meu coração/Numa aldeia junto à serra...".
A partida aconteceu em setembro. "Não tinha planos para ir. Fui mesmo por causa da pandemia. Andei a aguentar, a aguentar, naquela esperança de que as coisas iam melhorar mais dia menos dia, mas a tendência que houve foi para piorar e não para melhorar", disse.
Enquanto artista, Miguel Agostinho define-se como alguém que tem "uma enorme paixão" pelo que faz. "Gosto de transmitir essa paixão às pessoas, gosto de chegar aos arraiais, de ver as pessoas a dançar", expressou, com entusiasmo.
Um entusiasmo que já não faz questão de transmitir aos filhos. "Tenho instrumentos em casa para eles tocarem, gosto que desenvolvam um bocadinho, mas não os vejo com muita vontade de levar as coisas para um nível profissional e sinceramente, depois de ter passado por isto que passei e estou a passar, de momento, não tenho nenhuma vontade de puxar mais por eles, de os incentivar, de forma nenhuma", assegurou.
Das comissões de festas, dos amigos e admiradores tem recebido mensagens de apoio.
Natural de Cardosa, uma aldeia do concelho de Oleiros (Castelo Branco), Miguel Agostinho toca a solo, mas não raras vezes partilha o palco com o pai, hoje dedicado à iluminação e ornamentação dos arraiais.
"As pessoas gostam sempre de ver pai e filho lado a lado. O meu pai é muito conhecido aqui na região, desde que andava de motorizada, com o acordeão às costas a fazer por aí bailaricos e casamentos", recordou.
Voltar aos arraiais é, por agora, apenas um desejo. "O que sabemos é que fomos os primeiros a parar e vamos ser os últimos retornar", frisou.
Na primeira oportunidade regressa a Portugal: "Estou cheio de vontade. Embora ainda esteja fora do país é mesmo por necessidade, não por uma opção direta, se estou é porque fui obrigado a isso e não quero de forma nenhuma deixar esta carreira musical".
Para o futuro, apenas uma certeza. A próxima festa há de ser "uma grande festa".
José Jorge Letria, presidente da Sociedade Portuguesa de Autores (SPA) alerta que largas centenas de artistas que atuam nos palcos regionais estão a viver uma situação dramática.
"Há muita gente a viver em péssimas condições, em estritas condições de sobrevivência, no limite, e com enormes problemas para ultrapassar" a situação, afirmou, referindo-se à interrupção da atividade artística, devido às medidas decretadas para conter a pandemia de covid-19.
Para José Jorge Letria, o principal problema é a precariedade. A SPA tem defendido a criação do estatuto profissional do artista, que espera ver aprovado em breve e com o qual pretende conferir proteção aos artistas.
"O que posso dizer sobre estas pessoas, em geral, e são milhares, é que estão dispersas pelo país e a pandemia atingiu-os violentamente", indicou, acrescentando a este cenário os músicos que atuam em bares: "O grande problema que se coloca a estas pessoas e que pandemia veio agravar é o estatuto da precariedade".
"A maior parte destas pessoas que têm pequenos contratos e vão atuando em bares, em palcos regionais, dependem muito do vínculo precário de uma atuação, de um evento, um fim de semana, o fim de semana seguinte. A grande questão que se coloca e para a qual a SPA chamou várias vezes a atenção nos últimos anos é a necessidade da criação de um estatuto do artista, que defina as condições de proteção, desde logo as condições fiscais e as condições de vínculo laboral a uma instituição que os proteja, porque de outro modo não têm proteção", defendeu.
À SPA chegam frequentemente pedidos de ajuda de quem já passou por várias portas encerradas, artistas que, privados do palco, procuraram trabalho em cafés e restaurantes, mas também aí voltaram a ficar com a vida suspensa pelo confinamento.
"Quando digo que é uma situação dramática sei o que digo, porque é uma situação com a qual lidamos regularmente e às vezes aparecem-nos pedidos e apelos ansiosos e desesperados do ponto de vista psicológico", sublinhou Letria.
A SPA tem procurado responder a muitas das situações que lhe chegam, através de mecanismos de apoio solidário: "Apoiamos todos aqueles que têm condições estatutárias para serem apoiados, o importante é que tenham condições para serem aceites e estarem inscritos como autores e, portanto, são muitos".
De acordo com os números que facultou à Lusa, a SPA concedeu no último ano (de março a março), apoios globais de quase dois milhões de euros. Através do Fundo Cultural apoiou "largas dezenas de projetos", disse o presidente da instituição.
A candidatura a estes apoios depende do vínculo à SPA e das condições de serem aceites como beneficiários e depois como cooperadores ao fim de algum tempo, explicou. "Mas é uma situação dramática, que me faz ter as maiores apreensões em relação àquilo que vai vir a seguir".
Da parte do Governo, José Jorge Letria espera que a ministra da Cultura, Graça Fonseca, faça avançar o estatuto profissional do artista. "Enquanto a precariedade não for combatida a esse nível, eles não têm qualquer proteção", reiterou.
Para regularizar a situação é fundamental "o regresso do público", já que sem isso a oferta cultural "não é sustentável", admitiu Jorge Letria, para quem os artistas estão hoje numa situação de "grande vulnerabilidade" e a oferta cultural "muito enfraquecida".
"A maior parte destas pessoas hoje, com a viola debaixo do braço, vivem da precariedade que a pandemia também instaurou nas várias regiões e a situação deles é muito semelhante à situação vulnerável dos técnicos. São pessoas que não têm sequer condições para comer e estão a viver em condições dramaticamente precárias", revelou.
Muitos procuraram transitoriamente trabalho na restauração, mas também na construção civil.
"Há gente que foi para a construção civil e alguns emigraram, pela via da construção civil, porque a construção civil, apesar de tudo, tem tido trabalho, tem tido algum horizonte laboral, e por isso eles recorrem a isso. Agora os que procuraram solução e a salvação em restaurantes, por exemplo, com o confinamento e com o encerramento desses espaços, ficaram também sem soluções", lamentou.
"Durante anos tivemos reuniões com o Ministério da Cultura, reivindicando a criação desse estatuto, que é um estatuto que vincula estes criadores/recriadores, que são autores e são artistas ao mesmo tempo, que lhes dá proteção e a proteção tem de ser ampla e alargada, tem de ir desde a fiscalidade até ao aspeto assistencial", insistiu.
De acordo com José Jorge Letria, o segundo confinamento não veio melhorar a situação nos últimos meses e é preciso agora haver condições "para o público respirar fundo" e conseguir voltar aos hábitos de consumo e de partilha com os artistas. "Sem isso não há normalidade", declarou.
"Quando a vida artística depende muito dessa mobilidade precária dos artistas em palcos de província, em bares, em restaurantes, muitos deles a tentarem conseguir as condições materiais que lhes permitam gravar um primeiro disco ou criarem a sua formação musical, enquanto isto não for conseguido eles estão extremamente vulneráveis", assumiu o presidente da SPA.
José Jorge Letria, que integra a direção do Grupo Europeu das Sociedades de Autores em Bruxelas, manifestou-se apreensivo em relação ao futuro, até por ver que este "drama" é vivido por outras sociedades na Europa.
"É uma situação que vai levar muito tempo até ser ultrapassada", considerou.
"A SPA está preocupada e atenta. Bateu-se pela criação do estatuto profissional do artista, fizemos tudo o que está ao nosso alcance e temos os mecanismos de apoio solidário que têm sido postos em prática ao longo deste ano, de março de 2020 a março de 2021, mas são largas centenas de artistas e autores também que estão afetados por isto e nós vamos estar atentos para ver quais são as condições de regresso deles à normalidade, à normalidade possível, não à normalidade desejável, mas à normalidade possível", declarou, frisando que espera respostas ao nível do poder político.
Questionado sobre a importância dos artistas que atuam nos arraiais portugueses e se devem ser apoiados José Jorge Letria respondeu: "Claro que sim! A vida cultural e artística é uma atividade muito plural e muito diversificada e portanto todos eles são importantes, porque mesmo estas animações locais em palcos de província e às vezes em pequenos locais, no bar onde se toca e se canta, tudo isso são atividades e ofertas culturais e artísticas que são essenciais até para a coesão psicológica das comunidades, que dependem também desta partilha, porque a cultura é um fator essencial de estabilidade e de coesão, de estabilidade e de integração e quando isto falha, falha quase tudo o resto".